“perto de você, sou tão perto de você...”- O Teatro Mágico
Saudade pode servir de remédio. Ou de catalisador. Por vezes, ambos ao mesmo tempo. Mas, acima de tudo, é sintoma.
Tive a grata oportunidade de experimentar isso. Claro que, como sempre, antes do sublime há a viagem, o processo de quebra, de morte. E dói. Claro que dói, é pra doer. E deve ferir também. Se não for assim, a saudade é um remédio para uma doença inexistente.
Senso comum é o conhecimento de que saudade é catalisador. A todos os sujeitos participantes da espécie humana são conhecidos os seus efeitos. Potencializa tudo. Aumenta a propulsão das forças que nos faz expelir verdades, principalmente as que tentamos disfarçar. Os filhos admitem que precisam dos pais quando da primeira viagem sozinhos; o peregrino percebe o valor de sua cultura quando inserido em outra estranha, que lhe é hostil; os irmãos que mantêm uma relação cão-e-gato, quando crescem, se tornam grandes amigos; o casal apaixonado que foi forçado a ficar distante geograficamente agiliza os preparativos do casório; esses e outros inúmeros exemplos poderiam ser elencados numa conversa de bar.
Mas não é desse tipo a que me refiro. Saudade é também catalisadora de descobertas, de revelações, de encontros espelhares, de catarse. Deixa-nos sensível o suficiente para enxergar o que antes estava apenas imanente. Provoca insights. E também põe em polvorosa o que antes estava apenas desorganizado. Portanto, pode ter dois efeitos distintos: ou cega a visão outrora embaçada, ou a cura de vez. O que nos leva a um processo ou a outro? Creio que a predisposição. Mas também há um outro princípio ativo: a capacidade de ser remédio.
Inicialmente, saudade potencializa as forças e as faz, vez por outra, explodirem. O que causa estragos. Mas se existir tempo para tanto, ela é seu próprio remédio. Na ausência, pode ser veneno, na presença é bálsamo. Se torna memória reminiscente da dor. A dor como indício de sentir e de estar vivo. O mesmo efeito da dor do parto. A alegria da presença é tanta que faz da dor passada um trunfo, um marco, um rito de passagem. Assim, saudade cura os estragos potencializados e deixa na lembrança uma aura, um quê espectral, uma sombra de uma verdade que se quer revelar.
Saudade é sintoma de que falta. A presença da ausência. E se falta, é porque faz falta. E se faz falta, é porque é importante, talvez crucial. O quanto o objeto da saudade é importante sempre será diretamente proporcional à sua intensidade. Agora, imaginem o quanto dói ferir algo essencial. No sentido estrito da palavra, algo que é parte da essência, parte do ser. Porque perder pedaços do estar incomoda, mas não muito. Estar é, por si só, transitório. Mas o ser é identidade, é constituição. A quebra do estar prediz mudanças; a quebra do ser prediz vazio.
Por isso que saudade é, acima de tudo, sintoma. É nosso alarme emocional de que, aquilo que está longe é importante, talvez essencial. E talvez, dependendo do caso, nos leve a uma revelação: é quando descobrimos que a causa da saudade diz respeito ao círculo semântico do nosso ser individual, ou seja, muito mais importante do que o estar; virou identidade.
É quando ficamos sensíveis o suficiente para admitir a verdade oculta, que só veio à tona da crosta de nossa percepção depois de abaladas as estruturas: deixo de ser o que sou na ausência de algo/alguém.
Tudo isso para definir a importância de estar perto do que se é perto.