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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

50 tons da psicologia feminina

Elisa, sua depravada! Analisando "cinquenta tons" de novo? Sim, de novo. Estou no meio da leitura do segundo livro e gostaria de compartilhar novas leituras da obra.

Mas antes, alguns paradigmas:

1- Não, definitivamente não é apenas um livro pornográfico.
2- Isso definitivamente não é desculpa para lê-lo antes da hora. É um livro adulto, e creio que, apesar de profundas e com um certo valor, as camadas de leitura possíveis não são desculpas para entregar tal leitura a uma ingênua desavisada. Afinal, sim, tem sexo demais!

O que estou querendo dizer é que como li, e tenho lido a obra, com um certo par de óculos pré-postos, um vício literário aprendido na faculdade e um viés que muito me interessa em obras diversas, para mim Cinquenta tons, acima de tudo, levanta a questão do feminino e suas questões. E é esse o caminho das pedras proposto.

No primeiro livro, o que estava em jogo é como julgaríamos o complexo e marcado Grey (e como reagiríamos à ingenuidade exagerada de Ana). O segundo livro deixa de ser um deslumbre pornográfico para, na minha opinião, virar literatura (digo texto artístico que diz mais do que parece dizer, que levanta questões, que ensina a pensar e que lida com instâncias universais; passível de leituras). Isso porque, em "Cinquenta tons mais escuros" há a revelação do tema central, apenas apontado no primeiro: a complexidade humana.

O que de fato me saltou aos olhos foi a transformação mútua por que passam os personagens. Ana, ao mesmo tempo que cede um tanto, faz Grey ceder. E na verdade, vence: a cada página vemos a boba personagem se transformar numa mulher madura e segura, capaz de enfrentar os monstros de Grey com sabedoria e maestria. Mas ainda não é o que, para mim, é a pérola do texto.

E o que vai ficando patente é que, sim, Anastácia Steel está aí para jogar na cara de mulheres pós modernas algumas verdades sobre elas mesmas que elas não querem aceitar. Certo, vou reescrever: Ana nos aponta o dedo suavemente e diz a nós, todas as mulheres, que somos um pouco assim. E não me refiro ao debate raso sobre fetiches. Faça um esforço e vamos mais fundo nisso.

Ao admitir que ama, Ana chega à conclusão óbvia: não posso deixá-lo. E não é pautada em romantismo clichê. Não; está pautada numa característica eminentemente feminina de visão de mundo: nos satisfazemos ao satisfazer. Certo, ainda ficou com conotação sexual, vou reescrever: o prazer metafísico da mulher, sua identidade, seu estado de plenitude é alcançado quando percebe que é "a parte que faltava" do homem que ama. No fundo, queremos ser o refúgio, a salvação, o alicerce, o "jardim fechado", o oásis, o bálsamo, o esconderijo, o braço direito. Precisamos da sensação de fazermos parte da história, uma parte importante, de alguém que consideramos digno de nós. Resumindo: fazemos um mundo para ouvir "eu preciso de você"!

A reviravolta da trama do romance começa exatamente quando Christian admite que precisa de Ana, em todos os sentidos. Ela se sente parte dele a partir do momento em que se sente responsável por seu alívio. E calem-se os maliciosos, mais do que alívio físico, o psicológico.

Usando uma linguagem bíblica cristã, fomos engendradas para sermos "a ajudadora idônea". Essa é a nossa missão a partir do momento em que nos vemos sendo a mulher dos sonhos de alguém. Para esse propósito se lançam nossos impulsos, nossas motivações, nossa identidade.

Isso não significa ser menor, ser capacho, ser subserviente. Significa decidir ser a parte faltante de alguém que nos merece ter. E o mérito, como Ana quer fazer Grey ver, não está numa lista de "características essenciais" ou num padrão de perfeição; o mérito é baseado, apenas, em ser o alvo de nosso amor. Grey, em sua cabeça masculina, não se sente digno de Ana por ter tal bagagem sombria; Ana, em sua cabeça feminina, se sente realizada ao ser o que Grey precisa ter, mesmo sem merecer. Um pequeno "merchan" para meu próprio texto: amor, diz as mulheres, é uma questão de graça, e não de mérito; é escolha!

Sim, somos todas assim. Claro que o romance leva a situação ao absurdo, ao colocar uma ingênua querendo ser a parte faltante de um homem marcado por abusos e traumas inimagináveis. Mas não precisamos ir tão longe.

Pode-se perceber tais traços em qualquer casal, principalmente nos momentos castos e triviais. A namorada fica feliz quando o cara lhe confidencia um segredo, ou conta com sua ajuda para algo de sua especialidade. A mensagem, aos ouvidos dela, é confio em você e preciso de você. A esposa fica feliz com solicitações do tipo querida, passe minha camisa ou preciso que pague tal conta para mim quando tais pedidos têm o tom de conto com você, e não o de faça sua obrigação, mulher!. Coisas triviais que nos enchem de uma alegria besta por sermos parte de, por pertencermos a, não no sentido de posse, mas no de unidade, de extensão. Vira identidade.

Sabemos que os homens não fazem ideia do que seja isso, tanto que a autora de Cinquenta tons é uma mulher! Tenho minhas dúvidas se um homem seria capaz de levantar tais questões ao escrever o mesmo tema. Eles são literais, minha filha, diz a mãe de Ana, estando completamente certa. A transcendência é uma característica do feminino. Essa mania de significarmos tudo com o mais alto grau de metafísica!

Isso é universalmente mulher. E fiquei me perguntando, ao admitir esse paradigma se, apesar de absurdo o contexto, será que eu e qualquer outra mulher que admita isso não faria exatamente o que Ana faz? Será também que não pagaríamos o preço para sermos a salvadora do belo Grey marcado, ferido e torto desde o ventre? Provável que sim. Reafirmo que o contexto parece absurdo, mas o substrato encontro aqui, em todas as pequenas gentilezas que cedo ao homem que amo.

O problema é que, educadas para sermos pós-modernas, fortes, inquebráveis, mulheres que não admitem abusos e maus tratos (o que é uma grande conquista de cosmovisão), nossa fortaleza tira um pouco de nós uma característica que, se bem dosada e utilizada com bom senso (e com o cara certo) nos realiza, nos plenifica, por que não?

Assim, creio que, além de discutir fetiches bobos, a raiz da questão do boom editorial da trilogia é o questionamento: afinal, o que é ser uma mulher moderna? Podemos admitir o feminino em nós, apesar do medo histórico de nos vermos acorrentadas novamente? Será que é possível que o desejo de liberdade e dignificação do feminino, conquistado pelas gerações feministas, não tenha tirado de nós a oportunidade e a ousadia de admitirmos o feminino por inteiro, inclusive seus lados dócil, frágil, doador e submisso (sem toda a carga pejorativa do termo)? Será que, lutando em sermos fortes mutilamos  nossa mulher interior a ponto de nossa essência ser tabu, discurso magoadamente negado por medo?

Creio que faz sentido. Levantar a possibilidade de tais tons da psiquê feminina já é um tanto perigoso e polêmico, imaginem admiti-los!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

M.V.A. - Mais Velhos Anônimos (ou "Esconderijos")

Tenho alguns esconderijos, lugares só meus. Pra onde fujo quando preciso. São raras as vezes, mas elas existem, quando precisamos simplesmente nos esconder. Vou explicar.

Sofro da "síndrome da mais velha". É uma doença psicológica e, apesar do nome, nem todos os "mais velhos" têm, mas a maioria. Não sei o motivo, mas nos sentimos responsáveis, por tudo e por todos. Queremos suprir as expectativas, queremos não errar. Sentimos a necessidade visceral de sermos maduros, exemplares, líderes - sempre. Regramos nossas vidas, nossos pensamentos, nossas escolhas, nossos desejos, nossa história para que seja o discurso do "como as coisas devem ser" e "o que os maduros fazem". E isso, desde o tempo em que nem tínhamos idade para sermos maduros.

E não é culpa de ninguém em especial. Nem todos os mais velhos se sentem assim. Não é resultado direto de pressão externa, de lavagem cerebral, de educação rígida, de cobranças paternas ou sociais. Ás vezes é uma mistura de tudo, outras de nada disso. Creio que nascemos assim.

Então abrimos mão sempre, principalmente de nós mesmos. De nossa fraqueza, do direito de aprontarmos quando crianças, quando adolescentes, quando adultos... Abrimos mão do que queremos, e nos mutilamos várias vezes; arrancamos parte de nossa identidade mais íntima para sermos aquilo que todos os mais novos precisam que sejamos. A cada passo dado, a cada decisão tomada, sempre uma "nuvem de testemunhas" nos acompanha: cada ação é pensada à luz dos impactos que suas consequências provocarão nos demais, nos que se espelham em nós, nos que seguem nossos passos, nos que nos respeitam e estimam. Pesamos expectativas e consequências a cada segundo, e decidimos, na maioria das vezes, em ser o papel proposto: os responsáveis, os admiráveis, os líderes - os mais velhos. Carregamos o peso das dores dos outros, e o peso de ser o conselheiro da maioria; e carregamos com prazer. Essa é a nossa identidade.

Mas às vezes, raras vezes, surtamos. De diversas formas. Alguns têm crises de choro que ninguém vê; outros têm hobbys só deles, outros têm diários. Alguns têm amigos, outros têm cachorros. O fato é que em algum momento precisamos admitir nossa fraqueza e loucura; nossos desejos e ambições; mesmo aqueles que estão acima das regras que nós mesmo estipulamos para nós mesmos. No fundo, no fundo, somos profissionais da vida: somos os "mais velhos" com profissionalismo brilhante, mas chega a hora de irmos para casa. Às vezes precisamos fugir.

E por quê? Bom, porque nossas fraquezas assustam aqueles que vêm em nós uma fortaleza. Nosso choro assusta aqueles que vêm em nós segurança. Nossos deslizes deixam os que acreditam que somos inabaláveis, embasbacados. Nossos momentos de loucura infantil, de irresponsabilidade, de humanidade chocam. E ficamos esperando a famosa frase "Mas VOCÊ?!". Então fugimos. Pra qualquer lugar seguro em que podemos ser nós mesmos, nus e pequenos, mais uns comuns; qualquer lugar em que se tolere erros.

Eu já tive esconderijos os mais diversos. Por alguns anos, meus melhores amigos foram um refúgio. Podia xingar, chorar, falar as coisas mais absurdas e cogitar loucuras; eles sabiam que não passava de meu cansaço falando por si. E ríamos dessas bobagens depois. Outras vezes, numa época mais solitária, foi o próprio Deus e meu violão. E que bom que Ele não é o fantoche que alguns acreditam: já pensou Deus fazendo as minhas "vontades iradas e insanas"? Nem eu estaria aqui para escrever isso! Meus livros, meus sonhos: todos já foram refúgios.

Hoje não: cresci, afinal. Hoje tenho lugares. Lugares só meus, pra onde corro apenas para deixar-me ficar só. Só comigo sendo eu sem a "eu" costumeira. Só para pensar o que quiser, desejar o que quiser, chorar o que quiser, gritar o que quiser... sem consequências (claro, continuo sendo uma "mais velha", não deixaria rastros). E em meus refúgios sempre há três elementos: tempo, espaço e espelhos. Os três para apenas um objetivo: poder encontrar-me comigo. Poder ser apenas eu, sem expectativas ou responsabilidades; sem papéis tomados ou consequências.

E geralmente, independente do lugar e do meio, acabo num lugar a-tempo-e-espaço, nos braços de um homem que não mais existe materialmente, e que sempre foi o melhor refúgio. Aqui, conhecedor de toda a história, de toda a dor, de todo o peso, de todos os medos, de todas as sensações, de todos os papéis, de toda a responsabilidade, de toda a pequenez-humanidade que sou; aqui ele me olha nos olhos e diz apenas: "Eu sei, Elisa... eu entendo!". E me abraça. Suspende todas as certezas, a não ser a de que me ama, apesar de ser a única pessoa no universo a me conhecer plenamente. Traz de volta a certeza que, pelo menos com alguém, não preciso pensar para ser, pois não serei julgada. Seu amor não está baseado em expectativas ou discursos; em papéis ou imagens. Apenas em si mesmo, amor per si. Ele é meu melhor (único, por excelência) Mais Velhos Anônimos.