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sábado, 25 de setembro de 2010

Convenções - parte 2

Sofri porque não me permiti crescer. Não, impossível, o garoto de olhos azuis do colégio não tinha o direito de me atingir; eu era inatingível. Não, eu não tinha inveja das populares bonitinhas do colegial, elas eram vazias demais, frágeis demais, convencionais....populares demais! Eu não seria mais uma tola a acreditar em sonhos infantis, a acreditar na lábia dos garotos, a abrir mão de minha carreira por um casamento e, muito menos, a passar o resto da minha vida ensinando convenções pra minha filha!

E por não ser tão esperta, não consegui me ver como fármaco, meu próprio veneno-remédio. Não entendia que minha precocidade me revelava o caminho da liberdade, ao mesmo tempo que matava minhas defesas. Eu não sabia a dosagem certa e quase, por muito pouco, me envenenei.

Com o tempo, lutar sozinha me desgastou. Só na minha força de mulher em potencial não daria certo. Porque apesar de meus esforços, sempre existem as circunstâncias e o acontecimento. Essa dupla Aristotélica é a mais peçonhenta do universo. Conspiram contra qualquer plano revolucionário que se erga no mundo!!

As circunstâncias me ensinaram que ser independente não era fácil assim, nem tão rápido. Que os acontecimentos não estariam sob meu controle, eu não os regeria. E o que é pior, poderiam se levantar contra mim, tirando meu chão, expondo minhas fraquezas tão bem escondidas.

Na briga por decidir meu destino, perdi. Certa feita entreguei os pontos, que se fizesse o que seja lá Deus quisesse. E por ironia, com um humor sábio e estranho à minha lógica recebi o direito de ser o que quisesse. Recebi o direito de controlar minhas decisões, meu futuro, os caminhos de minha revolução.

Mas o estrago já estava feito: eu não era mais uma forte. Com as feridas expostas e ainda doloridas, tive que admitir minha fraqueza inerente. Ainda sonhava grande; sonhava, mas não tinha ferocidade nem forças para agir. Nem sabia mais o que queria ao certo.

Voltei ao plano inicial, mas com reservas. Seria inteligente sim, mas se isso serviria pra alguma coisa, não saberia responder. Seria especial, intocada, forte, bela, mas também admitiria que meus gostos mudaram. Queria ainda fazer tudo o que eu achava legal, tudo o que sonhava fazer, mas fiquei sem reação ao perceber que minhas brincadeiras atuais me lembravam certas convenções antigas. Foi aí que caiu a ficha.

Comecei a observar que as garotas da minha idade eram, de certa forma, parecidas: usavam calça jeans e tênis na maior parte do dia; estudavam para ser profissionais independentes; tinham seus carros. Não se casavam cedo e, quando o faziam, era por gosto e precocidade ou por necessidade e filhos precoces. Futebol deixou de ser coisa de menino, até seleção olímpica tivemos! E de tal forma nos tornamos respeitadas que os garotos, sim, usavam de nossa inteligência pra viver, respeitavam nossa força e opinião. E as meninas agora só brincavam de bonecas se quisessem, porque já haviam tênis bonitos, bermudas delicadas e sandálias confortáveis.

A revolução aconteceu sem eu perceber! Querendo a mesma revolução que eu, todas as meninas do mundo se tornaram fortes e vitoriosas. Até viramos amigas das populares, aprendemos com elas!

Mas minha revolução pessoal foi tão forte e tão abrangente que, adivinhem?

Virou convenção!!

Dá pra acreditar? O oposto radical se instaurou: aquela que não estuda, que não quer saber de futebol e carros, que não entende de política nem dirige, que prefere ficar arrumadinha a brincar na lama, que gasta horas em frente ao espelho, que faz charme pro menino bonito de olhos azuis da escola; essa, com uma raiva que não consegue explicar mas que pretende vencer com uma revolução, ouve todos os dias que "usar salto nessa idade não é coisa de menina inteligente! Põe um tênis, vai brincar, vai ler um pouco!".

Convenções ... Lembro-me bem da minha rebeldia a elas. Não entendia por que as garotas não podiam ser tão felizes quanto os meninos!! Por que não podíamos simplesmente ser o que se era, cada uma no seu ritmo? Garanto-lhes que seremos mulher pelo simples fato de um dia, em algum espelho, em algum olhar... sim, um dia nos descobriremos uma. Então, por favor, me deixem curtir o fato de nascer uma menina!

Foi o que fiz. Não, não virei detetive, engenheira, advogada ou executiva. Porque tudo isso fazia parte dos modelos imaginários de revolução que me vendiam. Nem fui rebelde, independente, forte, solitária. Não comprei um apartamento pra ir morar sozinha; não me apressei a sustentar uma casa; não me fiz de forte, como se não precisasse de um garoto só, como se rodízio fosse sinal de fortaleza, de modernidade.

Agora, se me procurar, vai encontrar uma garota apaixonada e sonhadora; que quer estudar porque gosta, sem a obrigação de lucrar sempre. Que quer amar porque é sim frágil, doce e carente. Que quer casar e quer que seus filhos brinquem o quanto quiserem, e se tornem fortes e independentes, homens e mulheres, quando o tempo lhes exigir isso. Quer usar saia só quando tiver vontade, andar descalça quando tiver a fim, rolar na lama por esporte e usar maquiagem.

Pois é....nunca fui adepta a convenções!

Convenções - parte 1

Lembro-me bem de minha rebeldia a elas. Não entendia porque as garotas não podiam ser tão felizes quanto os meninos. E nem tinha lido Drummond ainda! Ora, afinal de contas quem nega que brincar na lama, esconde-esconde, futebol e carrinho de controle remoto é muito, mas muito mais divertido que aprender a lavar louça?

E me revoltava, e me negava a submeter-me a qualquer regrinha ilógica e sem sentido. Pra que passar horas desembaraçando o cabelo de manhã se depois que se anda de bicicleta está todo embaraçado de novo? E pra que serve essas roupas que, para vesti-las é necessário não correr, não pular, não rodar? Se com sandálias meus pés se sujam na areia como se estivesse descalça, por que não retirá-las? Ou até mesmo, por que calçá-las? Por que não um tênis?? "É mais bonito menina de sandália", diziam meus pais. Certo....então inventem sandálias bonitas que não sujem os pés!! E quem disse que beleza vale ponto na gincana de rua do bairro?

"Futebol é coisa de menino", esbravejava minha mãe, num furor assutador, como se eu tivesse acabado de cometer o pior dos pecados; como se os pecados de todo o mundo tivessem nascido da minha vontade de jogar bola. Se eu fosse um pouco esperta, se minha linguagem fosse um pouco mais articulada, se tivesse prestado atenção aos jornais saberia explicar: "mamãe, a formação da identidade pessoal não depende do que se faz, mas do que se é por imanência; garanto-lhe que serei mulher pelo simples fato de um dia me descobrir uma, afinal eu sou mesmo; e veja minha teimosia como o prenúncio de dois traços tipicamente femininos: a capacidade de admitir vários papéis distintos (atacante, volante, goleira na mesma tarde!!) e a certeza de que sou indispensável (aquele time afundaria sem mim!); por hora, posso jogar futebol!". Não, eu não era taaaão esperta! Só sentia aquela raiva inexplicável, aqueles sentimentos impronunciáveis, aquela percepção inicial de que o mundo é injusto!

Certo: quer dizer que meninas nasceram fadadas ao tédio das bonecas sem graça e ao orgulho ferido de dar preferência aos meninos nas alegrias da vida pelo simples fato de nascerem meninas?! Mas...esperem um pouco....quem foi que disse que eu queria ser menina assim, por acaso me deixaram escolher? Ah, se eu descobrisse quem escolheu por mim sem me perguntar antes...vai se ver comigo!

Não, nunca fui adepta a convenções. E essa percepção precoce (em quase tudo fui precoce), ela sim, foi meu pecado original. Dela vieram todos os outros, e a lentidão na única área da vida que não crescí precocemente. Essa raiva passou a guiar minhas decisões, desde as mais banais até as mais importantes; delineou meus modelos, meus sonhos, meu sistema de valor.

Seria inteligente! Tão, mas tão inteligente que até o mais inteligente dos meninos precisaria da minha inteligência pra viver! Saberia tudo, tudo mesmo! A ponto de abrirem uma exceção na regra e me deixarem ser feliz, a única menina feliz do mundo! Esse era meu alvo de vida.

E seria tão esperta, tão rápida, tão culta, tão independente que ninguém poderia me dizer que as coisas legais eram feias. Iriam gostar tanto de mim, tão diferente mas tão vitoriosa, que acabaria me tornando o modelo. Aí haveria esperança! As mamães do futuro diriam: "é feio não brincar, não jogar bola, se arrumar tanto a toa, estudar pouco, saber demais da casa! A pessoa mais bonita e mais legal do mundo não fez nada disso, imitem ela!". Decidi ser revolucionária! Os livros lembrariam de mim!!

E sofri. Porque, como disse, não era tão esperta assim. Sonhava, e sonhava grande, Carson, mas não sabia dosar a raiva com minha doçura inerente de menina; não sabia dosar rebeldia às convenções com o ataque a mim mesma; me tornei radical. Comecei a brigar com tudo aquilo que se configurava sombra do feminino. Ainda não tinha a consciência de que minha fragilidade e doçura eram minhas maiores armas.

(Continua)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A foto

No jantar do meu aniversário de 23 anos, meu irmão tirou uma foto em seu celular. Fomos a um rodízio de massas com a família do meu namorado, já que minha cunhada também comemorava, dois dias antes de mim.

Não tinha visto a foto ainda. Outro dia, fuçando na novidade tecnológica que até TV tinha, topei com seu álbum de fotos e resolvi espiar. Foi então o susto.

O sorriso daquela mulher me intrigou profundamente. Era bela, jovem, radiante. Senti inveja e espanto. Quem era?

Fiquei encantada com uma foto de mim mesma, mas não me reconhecí. Eu não sou bela assim. E nunca fui tão auto confiante, tão superior, tão plena. E lembro-me bem de que aquela noite foi atípica. Foi a primeira vez que trajei um vestido fino por iniciativa própria, sem obrigação da ocasião ou imposição dos pais. Creio que foi a primeira vez na vida que me arrumei por gosto, sem me sentir um extra terrestre ou presa numa camisa de força; pelo simples prazer de gostar da própria imagem no espelho. Também foi a primeira vez que me arrumei consciente de que um par de olhos me acompanharia constantemente, a noite toda.

E me senti natural, belamente natural. Como se tivesse alguma lógica em comemorar a própria existência, em agradecer os cumprimentos dos demais me congratulando por existir. Mas há algum mérito! Afinal, eu existia ao longo de 23 anos, sobrevivia. Não apenas corporeamente, mas resisti às crises juvenis, ao desconexo das imagens que tinha de mim, aos foras dos meninos, às brigas de ciúmes das amigas, às brigas ferozes com o espelho.

Não somente mendigava louvor à capacidade de estar viva, mas existia, talvez pela primeira vez, plenamente. Era inteligente, e ingressar na faculdade me provara isso. Era confiável, meus pais não tinham do que reclamar. Eu tinha o direito de gostar de coisas que nem todo mundo gosta, e isso não me diminuiria. Quem diria, eu não era nem cópia da minha mãe, nem do meu pai, nem de tia alguma. Era simplesmente eu.

E aquele par de olhos era meu trunfo, meu atestado de independência, de identidade, a medalha que comprovava que tinha vencido minhas próprias expectativas. Sim, eu existia triunfalmente. Porque um par de olhos tão dignos ou mais que eu mesma, tão complexos e intrigantes, tão caros quantos os meus, tanto vitoriosos na luta em ser alguém quanto; esse par de olhos me olhava, perscrutava, como se pudesse prender a imagem que vivia diante de si, como se pudesse eternizar a visão. Esses olhos me amavam, profundamente.

Talvez, por isso o brilho que irradiava do meu ser. Não aquele romantismo bobo, o suspiro juvenil. Mas a certeza de que sobrevivi, de que me tornei não só alguém pontual no mundo, com seus ideiais e princípios, suas crises superadas, suas faltas incorporadas, mas também alguém capaz de encantar, de espelhar um outro. Me tornei capaz de ser amada profundamente.

E toda essa certeza, que sempre me escapou e que vacila tanto, naquela noite foi potencializada. Ali me senti tão mulher, e tive tanto orgulho disso que, dias depois, ao olhar aquela foto, não soube dizer de quem era aquele perfil. Assim como o espetáculo da morte de uma estrela, aquela foto era prova cabal de que, por uma noite, apenas uma noite, querido Rosa, cheguei a existir!

Tive inveja da foto e do que ela representava. Assustei-me ao reconhecer, em meio a essa vida - às vezes sem vida, sem lógica, confusa, difusa- enebriantemente maravilhosa e rica de sentido, que um dia, uma noite eu fui a mulher que sonhava ser. E resolvi, depois de muito pensar, não permitir que os olhos que me amam a vissem. Seria a quebra de um encanto, a desilusão frequente daquilo que existiu pontualmente. Não insiramos essa mulher no tempo-espaço, amigo! Deixemos-na existir eternamente na memória! Talvez um dia eu a encontre brilhando em outra foto.