E me revoltava, e me negava a submeter-me a qualquer regrinha ilógica e sem sentido. Pra que passar horas desembaraçando o cabelo de manhã se depois que se anda de bicicleta está todo embaraçado de novo? E pra que serve essas roupas que, para vesti-las é necessário não correr, não pular, não rodar? Se com sandálias meus pés se sujam na areia como se estivesse descalça, por que não retirá-las? Ou até mesmo, por que calçá-las? Por que não um tênis?? "É mais bonito menina de sandália", diziam meus pais. Certo....então inventem sandálias bonitas que não sujem os pés!! E quem disse que beleza vale ponto na gincana de rua do bairro?
"Futebol é coisa de menino", esbravejava minha mãe, num furor assutador, como se eu tivesse acabado de cometer o pior dos pecados; como se os pecados de todo o mundo tivessem nascido da minha vontade de jogar bola. Se eu fosse um pouco esperta, se minha linguagem fosse um pouco mais articulada, se tivesse prestado atenção aos jornais saberia explicar: "mamãe, a formação da identidade pessoal não depende do que se faz, mas do que se é por imanência; garanto-lhe que serei mulher pelo simples fato de um dia me descobrir uma, afinal eu sou mesmo; e veja minha teimosia como o prenúncio de dois traços tipicamente femininos: a capacidade de admitir vários papéis distintos (atacante, volante, goleira na mesma tarde!!) e a certeza de que sou indispensável (aquele time afundaria sem mim!); por hora, posso jogar futebol!". Não, eu não era taaaão esperta! Só sentia aquela raiva inexplicável, aqueles sentimentos impronunciáveis, aquela percepção inicial de que o mundo é injusto!
Certo: quer dizer que meninas nasceram fadadas ao tédio das bonecas sem graça e ao orgulho ferido de dar preferência aos meninos nas alegrias da vida pelo simples fato de nascerem meninas?! Mas...esperem um pouco....quem foi que disse que eu queria ser menina assim, por acaso me deixaram escolher? Ah, se eu descobrisse quem escolheu por mim sem me perguntar antes...vai se ver comigo!
Não, nunca fui adepta a convenções. E essa percepção precoce (em quase tudo fui precoce), ela sim, foi meu pecado original. Dela vieram todos os outros, e a lentidão na única área da vida que não crescí precocemente. Essa raiva passou a guiar minhas decisões, desde as mais banais até as mais importantes; delineou meus modelos, meus sonhos, meu sistema de valor.
Seria inteligente! Tão, mas tão inteligente que até o mais inteligente dos meninos precisaria da minha inteligência pra viver! Saberia tudo, tudo mesmo! A ponto de abrirem uma exceção na regra e me deixarem ser feliz, a única menina feliz do mundo! Esse era meu alvo de vida.
E seria tão esperta, tão rápida, tão culta, tão independente que ninguém poderia me dizer que as coisas legais eram feias. Iriam gostar tanto de mim, tão diferente mas tão vitoriosa, que acabaria me tornando o modelo. Aí haveria esperança! As mamães do futuro diriam: "é feio não brincar, não jogar bola, se arrumar tanto a toa, estudar pouco, saber demais da casa! A pessoa mais bonita e mais legal do mundo não fez nada disso, imitem ela!". Decidi ser revolucionária! Os livros lembrariam de mim!!
E sofri. Porque, como disse, não era tão esperta assim. Sonhava, e sonhava grande, Carson, mas não sabia dosar a raiva com minha doçura inerente de menina; não sabia dosar rebeldia às convenções com o ataque a mim mesma; me tornei radical. Comecei a brigar com tudo aquilo que se configurava sombra do feminino. Ainda não tinha a consciência de que minha fragilidade e doçura eram minhas maiores armas.
(Continua)
Olá Cu..nhada kkk
ResponderExcluirNossaa qtas palavras?!?
Expressões sinceras.
Amo-te D+
**bjinhossssssss
meu e do(a) bbzinhooooo