Vira e mexe, o assunto volta à baila. Primeiro, foi meu escudo. O ostentava como uma pseudo-proteção fantasmagórica, irreal e inútil. O problema é que eu ia à busca do que temer. Depois virou meu inimigo número um. Travava minhas ações e minhas iniciativas em prol de alcançar o outro, qualquer que fosse ele. Virou vilão por ser meu ponto fraco mais sensível, e meu pior monstro. E ao final de voltas, quedas e recomeços, o encontro novamente, atrás do brilho dos meus olhos, mas diferente.
Ainda me lembro de todos os detalhes do processo. De quando descobri que o que esperavam de mim não condizia muito com o que eu achava que era. De quando tentei ser todas as coisas que, pensei, fariam de mim um ótimo exemplar. E de quando descobri que todas essas coisas não passavam de bobagens!
Ainda me lembro do conflito constante entre descobrir-me versus admitir-me. E do quanto doía estar num não-lugar, num parênteses de identidade. Jamais vou esquecer a sensação de ser não sendo, e de não ser sendo!
Ainda me lembro de construir meus alicerces em rochas que só existiam em meus sonhos. Me lembro também de, por muito tempo, tomar por verdade a sombra de perigos que eu mesma criei, na leitura distorcida do que, depois, descobri ser meus maiores aliados.
Me lembro de fingir ser forte pra não chorar, e de acreditar que chorar sozinha era sinal de maturidade. Me lembro que, para mim, não admitir minhas inconsistências e não tolerar a dos outros era sinal de santidade. E de acreditar que eu cresceria livre da possibilidade de cometer os erros de meus pais.
Me lembro, claramente, da minha postura inicial, de tentar fazer-me intocável e inalcançável, só pra ver se algum persistente seria teimoso o suficiente. Foi. E ao afirmar todas as premissas que outrora exigi, ao invés de sustentar meu balão cheio de ar, o esvaziou aos poucos...
Assim, murcha, desconstruída, com a identidade reconstruída, o reencontrei. Mas diferente.
Meu orgulho me fez dizer, certa vez, que, se pudesse escolher, jamais geraria outro ser de meu gênero. Era sacanagem demais dar vida a mais um vivente confuso e ilógico como eu. E que tivesse que aturar todas as pressões sociais, todos as expectativas frustradas, todos os conceitos ideológicos subconscientes pré-concebidos, todas as transformações físicas e psicológicas não pretendidas tão pouco ansiadas, todas as angústias, os amores, os desamores, todos os heróis se transformando em seres imperfeitos. Não, não faria outro ser humano experimentar tamanha convulsão de sentimentos e ideias, nem passar pelo processo dolorido de encantar-se com o mundo para desencantar-se, para tornar a acreditar, e tornar a desiludir-se...
Mas hoje, estando tão vazia de mim, tão plena de alguém, de alguns e de outras coisas, o que me faz tão cheia de uma eu tão diferente, cheia de vazios que preenchem, olho pra trás e ganho um brilho nos olhos. Hoje, tia de meninas e amiga de mulheres, olho para a garota que fui na mulher que sou e sorrio.
E se me perguntassem o que fazer, eu diria: deixe-a. Não a proteja tanto! Deixe-a sofrer, chorar, tremer, temer, sorrir, se apaixonar, se machucar, se ferir, ferir, arranhar com as unhas, quebrar as unhas, arrancar os cabelos. Deixe-a lutar e sangrar suas inconsistências, ilusões, medos, ansiedades. Deixe-a sofrer. Porque é este processo sofrido e medonho que molda o mais humano dos seres que conheço.
Ingênuos são os que acreditam que somos apenas beleza e sedução. Tão ingênuos, ou mais, são os que creem sermos apenas seres irritantes, amoladoras, confusas, mandonas, manipuladoras, egoístas. Mais ingênuos ainda são os que dizem capazes de nos entender, controlar ou prever.
Um sábio, a quem devo muito, participou e assistiu o processo por que passei. Quando fui pequena, quis me proteger. Quando fui confusa, teve a paciência do bom ouvinte, rara. Conheceu todas as faces de meu orgulho doentio e não entendeu nada. Se feriu com ele, riu dele, teve piedade dele. E o venceu. Mas a essa altura já estava de tal forma perto que foi incapaz de ver o todo panorâmico e compreender alguma coisa. Jamais terá ideia de sua participação fundamental.
Espantado com cada nova faceta de mim, e cada vez mais encantado com esse ser furta-cor que sou, foi capaz de apagar meu orgulho-incêndio-criminoso que me consumiu por muito tempo, deixando apenas uma labareda pequena e inofensiva atrás de meus olhos, com uma frase: “Nunca vou te entender, e por isso mesmo nunca vou deixar de te amar!”.
Vira e mexe, o assunto volta à baila. Primeiro, foi meu escudo. Depois virou meu inimigo número um. Hoje, tenho orgulho de ter orgulho.
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