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sexta-feira, 16 de março de 2012

Ateucracia

A humanidade conviveu e tem convivido com regimes não-democráticos: monarquias absolutas, teocracias, ditaduras, aristocracias, oligarquias, que privilegiam famílias, etnias, religiões, partidos ou classes. Com a substituição do poder personalizado pelo poder institucionalizado, surgiram os Estados Nacionais, as constituições e a democracia, como “o povo politicamente organizado”. Na maioria das vezes, o formalismo democrático e a liturgia das eleições apenas legitimam grupos, que controlam os aparelhos do Estado. Ao povo cabe apenas escolher periodicamente, entre os escolhidos, os seus senhores. Presencia-se no Ocidente, sob a fachada da democracia, uma nova autocracia: a dos ateus e agnósticos e materialistas secularistas -- netos do Iluminismo -- contra a maioria religiosa dos cidadãos. Essa ideologia aparece mais nítida com o término da Guerra Fria, e pretende confundir Estado laico com Estado secularista. Por Estado laico se entende aquele legalmente separado das igrejas, sem religião oficial, com a igualdade perante a lei, que se constitui um avanço para a civilização, e que foi uma das bandeiras do protestantismo histórico no Brasil. O Estado secularista expressa uma ideologia militante de rejeição da religião, de sua negação como fato social, cultural e histórico, ou a considerando intrinsecamente negativa. No passado, tivemos a influência da filosofia positivista que, com sua “lei dos três estados”, advogava a marcha inexorável da história de uma etapa religiosa inferior para uma etapa superior, pretensamente científica ou positiva. Essa filosofia marcou grande parte das ideologias contemporâneas, inclusive o marxismo, cujos regimes, oficialmente ateus, procuravam “colaborar” com esse processo histórico perseguindo implacavelmente a religião e tornando compulsório o ensino do ateísmo. O que essa elite iluminada tem dificuldade de aceitar é o fato de que, no século 21, a religião em vez de diminuir está aumentando, no que Giles Kepel denomina “a revanche de Deus”, e que dá o título do novo “best-seller” de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, “Deus Está de Volta”. Há todo um malabarismo intelectual para “explicar” essa anomalia, e, por outro lado, se procura promover um combate sistemático para contê-la. O antirreligiosismo teve como epicentro a Europa Ocidental, estendeu-se para a América do Norte, e se espalha pela periferia do sistema mundial, chegando até nós. Há uma prioridade de se atacar as religiões monoteístas de revelação, porque julgam que o monoteísmo promove a intolerância e a revelação traz conceitos e preceitos autoritativos retrógrados (o pecado, por exemplo) que se chocam com as visões tidas como superiores da autonomia das criaturas. Mais particularmente, esse ataque se centra contra o cristianismo. A intolerância para com a religião implica impossibilitar sua expressão nos espaços públicos ou que seus seguidores ajam publicamente por motivações religiosas. A religião, para seus adversários secularistas, deveria apenas ficar confinada às quatro paredes dos templos e dos lares, à subjetividade de cada um, condenada à irrelevância. Essa elite se sente iluminada, superior, com o papel histórico de proteger as pessoas delas mesmas, de corrigir seus “atrasos” e de “educar” a humanidade, seja pelo apropriação dos aparelhos ideológicos do Estado (educação, mídia), seja pelo uso do aparelho coercitivo do Estado (leis, justiça, polícia). Na esteira desse movimento temos tido a chatice do “politicamente correto” (moralismo de esquerda), a luta por retirar símbolos religiosos dos espaços públicos, acabar com os dias santificados, proibir a saudação “Feliz Natal” (deve-se apenas desejar “Boas Festas”), e a defesa de bandeiras como a liberação sexual, o aborto (no lugar do direito à vida, o direito da mulher a dispor do “seu” corpo), a eutanásia e a licitude das “orientações sexuais” -- a chamada agenda GLSTB (gays, lésbicas, simpatizantes, transgêneros e bissexuais). Por sua mobilização política (e não por “descobertas científicas”) se promoveu a retirada dessa anomalia do rol das enfermidades e dos ilícitos -- e se instituir o casamento homossexual -- e se parte para proibir os que querem deixá-la, cassar o registro de psicoterapeutas, forçar a maioria a mudar seus padrões morais e criminalizar os que não aderirem. Enquanto a Europa e a América do Norte já evidenciam um novo ciclo de perseguição religiosa, corre no Congresso Nacional um projeto de lei que faria o autor desse artigo ser condenado a até cinco anos de prisão por escrevê-lo. Enquanto a minoria materialista tenta forçar uma ateucracia e a minoria homossexual tenta fomentar uma heterofobia -- ódio aos que insistem no seu direito de afirmar a normatividade da heterossexualidade, e de não aceitar a normalidade do homoerotismo -- eles recebem o apoio (cavalo de troia) de outra minoria: o Liberalismo teológico. A nós, a maioria, cabe, democraticamente, o direito à resistência!

• Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de vários livros 

quinta-feira, 8 de março de 2012

Uma policial em formação: de novo e de novo


Há dias que acordamos e pensamos: de onde tirei essa ideia? E é nesse dias que você tem a chance de desistir. Mas desistir do quê?

Por que tornar-se um profissional de ponta, um policial federal, por exemplo, que se preze não é da noite para o dia. E não está em jogo apenas estudar pra caramba e treinar pra caramba. Pelo contrário, está em formação um caráter.

E dói. Tudo dói. Perder horas preciosas de sono dói. Estudar quando se quer dormir, dói. Treinar dói. Passar de seus limites dói. Mas não é o pior.

O desafio mesmo está em sair de sua zona de conforto... todos os dias. Decidir se submeter, de novo, a um processo dolorido dá preguiça de sair da cama, dá preguiça de abrir os olhos, dá preguiça de existir..

O vencer o confortável é o mais difícil. Não se permitir "descansar", não se permitir "estar carente", não se permitir.

Meu Deus, que absurdo! Sim, e exatamente por ser um "absurdo" é que existem tão poucos.

E vencer o emocional?

Você treina, treina, treina, estuda, estuda, estuda... aí, um certo dia vai pra casa confiante - poxa, treinei bem, estou indo bem! - até que tenta fazer uma barra e um simulado. Quando percebe que, na verdade, mal começou; há um looooongo caminho pela frente. São os dias que dá vontade de chutar o balde e dizer "Ora essa, vou deixar essa história e ser feliz!". Aí é que está: alguém que tem essa coisa inexplicável dentro de si, no sangue, que faz parte de sua identidade, em segundos vai chegar à conclusão que jamais será feliz se não tentar. E pra tentar você treina de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo...
Dolorida, cansada, querendo que entre ar pelos poros, trêmula da musculatura fatigada, passa por sua cabeça - sempre - o filme: as pessoas que te conhecem bem dizendo "magina, ela nem gosta de exercício...", "fraquinha, ela sempre desistiu fácil"; imagens de todos os treinos da sua vida, quando você era a última da turma do triatlon, a garota que chegou em último na competição de natação, a atacante de futsal que engordou depois de quebrar o nariz, etc, etc.

Em contrapartida passam outras imagens também: a da nerd que estudou horas e horas por dia, entre crises de choro e noites mal dormidas, tudo por uma vaga na maior instituição de ensino superior do país.

Vitórias e derrotas. Físicas, emocionais, psicológicas, espirituais. Todas estão ali, na sua mente, palpitando e convergindo em apenas uma braçada a mais, uma série a mais, uma página estudada a mais, uma hora de sono a menos. Todos os dias.

Agora entendo. Agora tudo faz sentido. Não, senhoras e senhores. Os policiais, os militares, os bombeiros, os atletas, eles não treinaram, estudaram, abriram mão de tempo, de abraços e de conforto pela conta corrente que possuem. Provável que foi, sim, a motivação inicial. Mas não se sobrevive ao processo pela motivação inicial. Sobrevive-se ao processo pelo processo. Porque um dia fica claro que o tornar-se é o que dá sentido às coisas. É a oportunidade de se reinventar e de vencer todos os discursos, todos os limites impostos, todas as expectativas, todos os limites tão seus, principalmente aqueles que só você conhece. É parar de lamber as próprias feridas e decidir tratá-las, enfrentar os próprios monstros, as próprias dores, vencer a própria história. Os resultados são apenas resultados.

E isso acontece em segundos: quando o corpo cansado pede pra você parar e você não para; quando sua mente cansada pede pra você parar e você não para; quando a sociedade capitalista do conforto pede pra você parar e você não para; quando seu senso de proteção, sua vontade de manter a própria imagem, quando seus limites pedem pra você parar... e você não para. Nesses segundos eternos você não pensa em quanto vai ganhar se conquistar o objetivo; você só pensa em provar a todas as vozes que martelam em sua cabeça, a todas as imagens insistentes, a todos os olhares guardados, a todas as marcas que construiu ao longo da vida, que você é capaz, sim, de fazer diferente, de acertar dessa vez, de ser outro, de começar de novo, e de novo, e de novo, e de novo.

A bronca da treinadora: "Você não pode parar! Uma semana que não vier na aula, um dia que não malha, um dia que não estuda, você perde o que trabalhou até aqui."

Tornar-se digno e apto a uma farda não é, apenas, ganhar muito e ter a tão sonhada estabilidade. É se reinventar todos os dias, e tentar de novo, e de novo, e de novo, e de novo... e de novo.