Interessante... E minha cachola começou a funcionar.
Que coisa poética! Sim, porque posso afirmar que o casamento é a reescrita da existência. Ora, parece até que toda a vida vivida antes, protocolada apenas com a certidão de nascimento, é apagada, ou melhor, ressignificada a partir do momento em que o indivíduo é considerado um ser casado.
Não interessa mais onde nasceu, o nome da cidade, o nome do escrivão, do hospital. Não interessa quem foi que registrou, e se o registro foi feito logo a seguir do parto ou dias, meses, anos depois. Não importa com quantos quilos nasceu, nem os sonhos que despertou nos seus pais, e as responsabilidades consequentes. Não importa se foi fruto de amor de um casamento sadio, de um casamento falso, de um romance louco, de um descuido. Quem quer saber se seu pai era advogado ou gari? Se sua mãe era do lar ou médica?
O que importa, nesse momento, é que de alguma forma você sobreviveu à vida e decidiu reescrever sua existência ao lado de alguém que você escolheu (ou escolheram para você). Importa é que você ama e pretende afirmar esse amor publicamente. Importa que você entre para a família do noivo (sim, porque nossa sociedade ainda é patriarcal, afinal alguém aí já ouviu falar de noivo que assume o sobrenome da namorada?) e lhe dê herdeiros que perpetue o legado da clã.
Estou um tanto irônica para um noiva, não acham?
A questão é que esse texto poderia mesmo ser poético. Ou melhor, para ser mais literariamente justa, romântico. Com altos valores e sonhos, com ideologias e utopias, com idealizações e toques do sublime e no intangível. A manifestação do belo na terra.
E tudo que gira em torno de casamento convencional vem com a aura cor de rosa no pacote. O glamour da cerimônia, o tapete vermelho, a entrada triunfal, o vestido bufante, as palavras juradas. Tudo muito cavaleiresco.
O problema é que estou, a cada dia, mais madura, mais simples, mais pé no chão e menos poética. E pasmem: mais feliz. Afinal, vou me casar, senhoras e senhores, e porque quero, e o que é o mais importante, com quem quero e quando quero.
Mas para mim, não é nada disso que faz desse tempo um dos mais doces de minha vida. Não recebo flores o tempo todo, nem declarações melosas, e apesar de me entupir de chocolate, apenas uso a ocasião por desculpa, porque a verdade é que sempre quis me entupir de chocolate apenas por adorar chocolate! Não: minha poética está bem a-poética. Na verdade, não deixa de ser poesia, mas foge às regras padrão.
Sabiam que em um casamento religioso com efeito civil os noivos só estão casados, de fato, quando entregam o livro de volta ao cartório, após assinarem na cerimônia, e recebem as certidões de casamento? É, só que isso tem o prazo máximo de 90 dias após a cerimônia religiosa. Sabem como é, tem gente que vai viajar de lua de mel, fica 20 dias no paraíso e esquece de questões práticas...
Muito bem: então quando, afinal de contas, começa o casamento? Na data da cerimônia? Depois dos 90 dias (será que é um tipo de período de experiência...? rs) para entrega do livro? Nas núpcias? E se formos levar a ferro e fogo (e meus pais já fizeram piada com isso) o certo não seria os noivos consumarem o casamento apenas com certidões em punho? Tipo... 90 dias depois?!
O que estou querendo dizer é que tudo isso é um tanto ambíguo, inclusive engraçado, para não dizer bizarro. O que é, afinal de contas, casamento, e quando alguém está, de fato, casado?
Há quem diga que é depois da igreja. Há quem diga que é depois do cartório. Há quem diga que é depois do sexo. Há quem diga que não é preciso nada disso (inclusive sexo... podem rir, eu deixo). E vamos parar com a palhaçada: por acaso casamento é = a relacionamento sexual??
Pois é, deu para perceber que sou um pouco contra-senso. Vou resumir o texto e dizer logo: para mim casamento é, ao mesmo tempo, um conjunto de coisas mas uma coisa só. Vou explicar.
Claro que tudo conta. A cerimônia de casamento é o rito de passagem social, afinal as pessoas precisam confirmar e atestar seu status de casado. E é legal, vai, ter a chance de colocar todo mundo que você gosta num único lugar, ao mesmo tempo! Família, tios, primos, amigos, colegas de trabalho, amigos de infância, gente que você não vê há anos.
Conta também a papelada no civil, porque é o que te dá direitos e coberturas, é o que protege legalmente a família. O casamento civil é quem dita herdeiros legais, direitos trabalhistas e sociais, etc.
E para quem crê, é super importante um culto. Uma celebração religiosa em que se consagre o relacionamento amoroso, base familiar. É importante e sadio.
Mas casamento não é apenas tudo isso. Porque todas essas coisas são acessórias. São tradições e burocracia. Festa, vestido, buquet, o corte da gravata, a viagem, tudo faz parte e é legal ter, mas são, apenas, acessórios (um tanto caros, inclusive!).
Porque o cerne é muito mais simples, e muito mais complexo. O cerne são dois indivíduos distintos tomando para si a responsabilidade de amar, de suprir, de amparar, de proteger, de investir, de dar suporte e de se comprometer com a vida do outro. E essa decisão é apenas deles.
É essa decisão que dita, ou deveria ditar, se existirá ou não um casamento de fato, tanto a cerimônia como o que vem depois dela. E para tomar essa decisão vai chão... E cada casal tem seu tempo, seu jeito, seus pilares.
Então, senhoras e senhores, casamento começa antes, muito antes dos noivos se chamarem de noivos e começarem a gastar loucamente. E por isso há quem se case já estando casado há tempos, e há quem se case sem nunca se casar. Há casamentos que começam antes da cerimônia, outros depois dela. Alguns muito antes ou muito depois; outros em menos tempo. E há casamentos que não acontecem, mesmo depois da cerimônia, do cartório, nas núpcias.
Por isso, desculpem: creio que enganei vocês. Todos que irão à minha cerimônia de casamento não sabem, mas estou casada faz tempo, desde o momento em que decidi que estaria; desde o momento que decidi me comprometer. Estou casada desde antes do sim, do apartamento, dos gastos, da cerimônia, da papelada, das núpcias. Porque casamento não é uma data mágica que muda tudo, e sim algo que se constrói com o tempo, todos os dias. Guardamos a data social como lembrança, como marco, porque gostamos de ritos de passagens. O problema é quando o rito toma lugar da essência.
Quebra toda a poética, não? Mas não deixa de ser poético!

