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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A poética a-poética

Ao dar entrada na papelada para casamento no cartório civil foram tantas as assinaturas - e risadas e gracejos e sorrisos - que fui capaz de não perceber que a atendente do balcão ficou com minha certidão de nascimento. Só percebi mais tarde, quando cheguei em casa, e por não conhecer o procedimento tomei o ocorrido como falha burocrática aliada à minha distração. Volto lá e pego depois, pensei. Foi então que descobri: o cidadão deixa de utilizar a certidão de nascimento porque ela é substituída pela de casamento.

Interessante... E minha cachola começou a funcionar.

Que coisa poética! Sim, porque posso afirmar que o casamento é a reescrita da existência. Ora, parece até que toda a vida vivida antes, protocolada apenas com a certidão de nascimento, é apagada, ou melhor, ressignificada a partir do momento em que o indivíduo é considerado um ser casado.

Não interessa mais onde nasceu, o nome da cidade, o nome do escrivão, do hospital. Não interessa quem foi que registrou, e se o registro foi feito logo a seguir do parto ou dias, meses, anos depois. Não importa com quantos quilos nasceu, nem os sonhos que despertou nos seus pais, e as responsabilidades consequentes. Não importa se foi fruto de amor de um casamento sadio, de um casamento falso, de um romance louco, de um descuido. Quem quer saber se seu pai era advogado ou gari? Se sua mãe era do lar ou médica?

O que importa, nesse momento, é que de alguma forma você sobreviveu à vida e decidiu reescrever sua existência ao lado de alguém que você escolheu (ou escolheram para você). Importa é que você ama e pretende afirmar esse amor publicamente. Importa que você entre para a família do noivo (sim, porque nossa sociedade ainda é patriarcal, afinal alguém aí já ouviu falar de noivo que assume o sobrenome da namorada?) e lhe dê herdeiros que perpetue o legado da clã.

Estou um tanto irônica para um noiva, não acham?

A questão é que esse texto poderia mesmo ser poético. Ou melhor, para ser mais literariamente justa, romântico. Com altos valores e sonhos, com ideologias e utopias, com idealizações e toques do sublime e no intangível. A manifestação do belo na terra.

E tudo que gira em torno de casamento convencional vem com a aura cor de rosa no pacote. O glamour da cerimônia, o tapete vermelho, a entrada triunfal, o vestido bufante, as palavras juradas. Tudo muito cavaleiresco. 

O problema é que estou, a cada dia, mais madura, mais simples, mais pé no chão e menos poética. E pasmem: mais feliz. Afinal, vou me casar, senhoras e senhores, e porque quero, e o que é o mais importante, com quem quero e quando quero.

Mas para mim, não é nada disso que faz desse tempo um dos mais doces de minha vida. Não recebo flores o tempo todo, nem declarações melosas, e apesar de me entupir de chocolate, apenas uso a ocasião por desculpa, porque a verdade é que sempre quis me entupir de chocolate apenas por adorar chocolate! Não: minha poética está bem a-poética. Na verdade, não deixa de ser poesia, mas foge às regras padrão.

Sabiam que em um casamento religioso com efeito civil os noivos só estão casados, de fato, quando entregam o livro de volta ao cartório, após assinarem na cerimônia, e recebem as certidões de casamento? É, só que isso tem o prazo máximo de 90 dias após a cerimônia religiosa. Sabem como é, tem gente que vai viajar de lua de mel, fica 20 dias no paraíso e esquece de questões práticas...

Muito bem: então quando, afinal de contas, começa o casamento? Na data da cerimônia? Depois dos 90 dias (será que é um tipo de período de experiência...? rs) para entrega do livro? Nas núpcias? E se formos levar a ferro e fogo (e meus pais já fizeram piada com isso) o certo não seria os noivos consumarem o casamento apenas com certidões em punho? Tipo... 90 dias depois?!

O que estou querendo dizer é que tudo isso é um tanto ambíguo, inclusive engraçado, para não dizer bizarro. O que é, afinal de contas, casamento, e quando alguém está, de fato, casado?

Há quem diga que é depois da igreja. Há quem diga que é depois do cartório. Há quem diga que é depois do sexo. Há quem diga que não é preciso nada disso (inclusive sexo... podem rir, eu deixo). E vamos parar com a palhaçada: por acaso casamento é = a relacionamento sexual??

Pois é, deu para perceber que sou um pouco contra-senso. Vou resumir o texto e dizer logo: para mim casamento é, ao mesmo tempo, um conjunto de coisas mas uma coisa só. Vou explicar.

Claro que tudo conta. A cerimônia de casamento é o rito de passagem social, afinal as pessoas precisam confirmar e atestar seu status de casado. E é legal, vai, ter a chance de colocar todo mundo que você gosta num único lugar, ao mesmo tempo! Família, tios, primos, amigos, colegas de trabalho, amigos de infância, gente que você não vê há anos.

Conta também a papelada no civil, porque é o que te dá direitos e coberturas, é o que protege legalmente a família. O casamento civil é quem dita herdeiros legais, direitos trabalhistas e sociais, etc.

E para quem crê, é super importante um culto. Uma celebração religiosa em que se consagre o relacionamento amoroso, base familiar. É importante e sadio.

Mas casamento não é apenas tudo isso. Porque todas essas coisas são acessórias. São tradições e burocracia. Festa, vestido, buquet, o corte da gravata, a viagem, tudo faz parte e é legal ter, mas são, apenas, acessórios (um tanto caros, inclusive!).

Porque o cerne é muito mais simples, e muito mais complexo. O cerne são dois indivíduos distintos tomando para si a responsabilidade de amar, de suprir, de amparar, de proteger, de investir, de dar suporte e de se comprometer com a vida do outro. E essa decisão é apenas deles.

É essa decisão que dita, ou deveria ditar, se existirá ou não um casamento de fato, tanto a cerimônia como o que vem depois dela. E para tomar essa decisão vai chão... E cada casal tem seu tempo, seu jeito, seus pilares. 

Então, senhoras e senhores, casamento começa antes, muito antes dos noivos se chamarem de noivos e começarem a gastar loucamente. E por isso há quem se case já estando casado há tempos, e há quem se case sem nunca se casar. Há casamentos que começam antes da cerimônia, outros depois dela. Alguns muito antes ou muito depois; outros em menos tempo. E há casamentos que não acontecem, mesmo depois da cerimônia, do cartório, nas núpcias.

Por isso, desculpem: creio que enganei vocês. Todos que irão à minha cerimônia de casamento não sabem, mas estou casada faz tempo, desde o momento em que decidi que estaria; desde o momento que decidi me comprometer. Estou casada desde antes do sim, do apartamento, dos gastos, da cerimônia, da papelada, das núpcias. Porque casamento não é uma data mágica que muda tudo, e sim algo que se constrói com o tempo, todos os dias. Guardamos a data social como lembrança, como marco, porque gostamos de ritos de passagens. O problema é quando o rito toma lugar da essência.

Quebra toda a poética, não? Mas não deixa de ser poético!


Nudez

"Cara, me senti nu agora!"

Alguém aí já ouviu essa expressão? Não? Vou explicar: sabe quando uma pessoa inesperadamente delata o que você sente e pensa, seus segredos mais íntimos, suas crises... Quando alguém fala alguma coisa que cai como luva e você se sente exposto, vulnerável? É nessas horas que cabe a expressão citada.

Pois é... A nudez é a experiência mais marcante do ser humano de transparência. Quando expomos nossa fragilidade, aquela que queremos esconder. Nossosdefeitos, nossas feridas, nossas regiões sensíveis. A roupa vira escudo, não apenas do corpo, mas principalmente da mente.

Deu pra perceber que não estou falando de nudez, pura e simplesmente. Muito menos de sexo. Estou falando da significação subconsciente que temos da sensação de nudez. A sensação de estar completamente exposto e vulnerável à crítica alheia. O medo de sermos descobertos (e essa palavra é sabiamente dupla).

"O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha." Gn 2.25.
"Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se" Gn 3.7.

O que mudou? Já ouvi gente usar esse texto para "satanizar" o sexo, associando a nudez do texto à relação íntima, automaticamente. Já ouvi absurdos que interpretam o pecado inicial como a primeira relação sexual feita no mundo. Ora, por favor! Dá para ser menos raso?

Posso estar errada, mas sou do tipo que acredita piamente que o homem, a espécie humana, é una. Vamos lá, estamos no século 21, não dá mais para engolir que somos divididos em três partes independentes entre si, que o mundo material é mau e um outro que o espiritual, etc, etc. Deus não criou almas: criou o homem. Assim: pele, ossos, músculos, sentidos, sentimentos, percepções, criatividade, caráter. E pretende restaurar TODAS as coisas (Apocalipse 21.5). Para mim, todas é todas, palavra absoluta.

Enfim... Creio, na verdade, que Deus nos trata como tratamos as crianças. Precisamos de metáforas para entender as coisas. E a melhor metáfora que Ele nos deu foi a realidade que conhecemos.

Sabemos que a grande questão bíblica é o relacionamento dos homens com Deus. E ali o relacionamento foi quebrado. E o erro humano estava exposto. É a mesma sensação de quando você pisa na bola com um grande amigo seu, e cai a ficha da burrada que você fez. Sabe quando fica aquele clima esquisito? Pior, sabe quando tudo continua como se nada tivesse acontecido, mas no fundo você sabe? E com o tempo, não sabendo como tratar aquilo, vira uma sujeira embaixo do tapete, que você tem vergonha de expor, de admitir? E sente-se ameaçado o tempo todo pensando que uma hora isso vem à tona?

Pois é: quando temos do que nos envergonhar nossa reação é fugir. Sair correndo e nos esconder, igual à reação de Adão. Somos todos assim, meio infantis. E fazemos isso de várias maneiras: não tocando no assunto, fingindo que não tem importância...

O que aconteceria se esse amigo nos confrontasse, e não tivéssemos mais desculpas ou como escapar do papo? E se alguém, um dia, dissesse exatamente o que você teria escondido de todos a tanto tempo, expondo seus segredos assim, até sem querer? Sabe aquele feedback que te deixa sem chão? Exato. E como você se sentiu?

Nu.

E é disso que fugimos. Fugimos da vergonha de ter que admitir quem somos. Fugimos como crianças assustadas que somos das consequências da vida, da dor resultante. Não queremos nos expor, não queremos nos humilhar, não queremos nos sentir vulneráveis, e quanto menos souberem menor o risco.

É dessa nudez que estou falando.

E tudo isso para dizer que descobri um detalhe bíblico que está lá, desde o começo, e que a gente não lê: o caráter de Deus sempre O levará a nos fazer roupas.

Ele confronta, claro. Não nos deixa fugir do problema. Nunca deixou. Ele olhou nos olhos de Adão e disse "Quem disse que você estava nu?" Ele olhou nos olhos de Pedro e disse "Pedro, você me ama?". O Senhor não nos deixa fugir. Mas também não expõe nossa vergonha. A intenção dele não é pisotear em nossa vulnerabilidade, nos machucar como um sádico soberano. Não: ele confronta para sabermos que Ele sabe. E para sabermos quem Ele é.

Deus decide nos fazer roupas. Ele decide que nem nós, nem Ele, nem mais ninguém verá nossa nudez. Devolve-nos a dignidade ao decidir tratar e jogar a vergonha no fundo do oceano.

"O Senhor Deus fez roupas de pele e com elas vestiu Adão e sua mulher." Gênesis 3.21.
"Porque eu lhes perdoarei e não me lembrarei mais dos seus pecados" Hebreus 8. 12
"Estes são os que vieram da grande tribulação e lavaram suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro" Apocalipse 7.14
"Vistam toda a armadura de Deus para poderem ficar firmes contra as ciladas do Diabo" Efésios 6.11a.

Ele nos veste, sempre. De dignidade, de honra, de santidade, de bênçãos, de vida abundante. Sem merecermos, a questão não é mérito. Na verdade é, mas não o nosso.

A questão é que Ele mesmo foi posto no madeiro. Nu. E deixou em seu testamento, para nós, suas próprias roupas.


Adorador vs fariseu



Só está apto a adorar aqueles que sabem que não são dignos de estarem ali. Claro que não posso restringir adorador=participante de uma equipe de louvor. Vou focar neles (em nós), mas o princípio se aplica a todos.

Repetindo: só está apto a adorar aqueles que sabem que não são dignos de estarem ali.

E digo ali não apenas na frente de todo mundo; ali não apenas sendo exemplo para pessoas; ali não apenas como canal de uma mensagem cujo poder de impacto vai além de nossa limitada noção de poder. Não, a questão é maior. Porque ao se colocar diante de homens em nome de Deus, há também uma enorme plateia invisível. Seres capazes de destruir o ser humano, inclusive muito a fim disso. Outros, seres capazes do impossível em nome do Altíssimo, com espadas em punho. Anjos e demônios, creia-se neles ou não.

Não apenas, ainda, por isso. Há uma outra plateia, invisível e perceptível apenas pela fé que dá a certeza das coisas que não se veem. Homens e mulheres, de diversos tempos e eras, que serviram ao mesmo Deus, que você diz servir, com excelência, alguns dando a vida por isso. Milhares e milhares de testemunhas, uma nuvem delas, olhos dos céus direcionados ao agir de Deus na Terra, e seus instrumentos. E não para por aí: se a criação geme aguardando a manifestação dos eleitos, temos o cosmos de orelha em pé. E óbvio, não menos importante, o próprio Deus, em pessoa, habitando dentro de você e querendo se manifestar através de você.

Um peso gigante? Não. Uma responsabilidade gigante? Com certeza! Um privilégio extraordinário? Sem dúvidas! E todos sabem a diferença entre cantores e adoradores. É inconfundível. E sabemos que a mesma pessoa é capaz de ser, ora cantor, ora adorador. Eu sei, já fui os dois.

Mas só está apto a adorar, mesmo, aqueles que sabem que não são dignos de estarem ali. Aqueles que veem Alguém grande o suficiente digno de adoração, de veneração, de temor, de gratidão, de amor. Porque os verdadeiros adoradores não apenas temem o Todo-Poderoso, mas também o conhecem intimamente. Sabem de suas feridas íntimas saradas por Ele; sabem de suas lutas diárias travadas juntos; sabem de suas conquistas secretas; sabem que erram sempre, mas nunca são deixados para trás, apesar de merecerem.

Posso estar sendo ousada aqui, e digo que o que afirmarei é apenas interpretação minha provinda de minha experiência. Mas ouso dizer que só está apto a adorar quem sabe, na pele, o que é ter e não ter acesso à graça.

O perdão divino cria adoradores; a lei fria cria fariseus.