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sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

E quem disse que um escritor dorme?

 Primeiro, escritores levam certo tempo para "saírem do armário". Sim, porque não é fácil assumir que, no fim, a coisa que você melhor faz não dá dinheiro, nem todo mundo se interessa, pode te falir, pode ser um hobby frustrante, e te aliena um pouco do mundo, mesmo quando te aproxima de tudo. É duro admitir que sua melhor habilidade é escrever.

Segundo porque um cérebro de um escritor não funciona de forma óbvia. Acumulamos informações, cenas, piadas, tons, expressões e impressões ao longo do dia inteiro enquanto trabalhamos (é óbvio que nem todo escritor vive de escrever, e claro que todos sonham com isso), e quando o mundo desliga e silencia, ele cisma de ligar as sinapses nervosas e falar, falar, falar, falar e falar, até você não aguentar mais e sentar-se a frente de um computador para "psicografar" ideias próprias.

Quando não aguentamos mais, dormimos (quando podemos) ao longo do dia, enquanto as pessoas normais estão vivendo vidas normais, capitalistas ou não. Acordam, trabalham, planejam, sonham, briga, se irritam, se estressam, comem, vão para casa, ouvem música, tomam banho, transam e finalmente desligam. Alguns profundamente, outros nem tanto. Mas repõem as energias para viver um novo dia no dia seguinte.

Escritores não. Não temos esse preconceito de ver cada dia um dia, como blocos unitários independentes, separados entre si, ciclos finitos e conclusos ao repousarmos a cabeça. Nosso tempo é continuum. Ações de um dia refletem no dia seguinte, conceitos são construídos ao longo do tempo, e o mundo é o mesmíssimo à noite, com exceção de, basicamente, menos luz disponível. As árvores estão lá, os prédios também. Menos as pessoas, que estão em casa para seu rito de passagem diário e habitual do sono dos justos.

Os que já tiveram o privilégio de passar uma noite em claro, digo uma noite inteira, sabem da sensação de nada ter terminado ou começado: são apenas fases interligadas. Os dias e noites se revezam como capítulos de novela, ou parágrafos de um enredo conciso, coerente e contínuo. A vida não pára ao dormirmos. Só nós que nos esquecemos dela.

Bom, escritores não se esquecem. Uma noite de sono não nos faz esquecer promessas, por isso somos amantes perigosos. Não nos faz acreditar que tudo vai mudar no dia seguinte, porque nossa experiência diz que o texto estará lá, exatamente onde o deixamos. Nosso corpo, às vezes, desliga para manutenção. Não nossa mente.

Escritores sonham enredos, e criam enredos a partir de sonhos. Já escrevi contos de meus pesadelos. Para mim, meus sonhos é a parte mais esclarecedora, quando meu cérebro não precisa gastar tanta energia em manter um corpo ativo, e pode se concentrar em pensar, e digerir impressões, conscientes ou não. Então os coloca em ordem, e escreve um enredo coeso e lógico (ou ilógico com certa lógica...).

Sabe quando percebemos que, independente do trabalho que nos dá a renda necessária para viver, somos, no fim, essencialmente escritores? Quando percebemos que não dormimos, de fato, como todos os outros. Mesmo quando dormimos.

A todos vocês, uma boa noite!

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