Era só ter um tempinho livre, e lá estava eu, descabelada, descalça, de shorts e camiseta, encostando a bicicleta em seu tronco enorme. Não que seja realmente grande, mas como eu era pequena, via tudo muito grande.
Era sozinha, só ela, naquela esquina na vila onde morei por muitos anos, várias vezes. Na época em que ninguém me compreendia, e quando eu não compreendia ninguém, era ela o meu esconderijo. Não que tivesse algo de escondido. Estava no ponto mais alto da rua! Mas para quem tem 10 anos, todo canto muito seu se torna só seu.
O tronco largo, a certa altura, se dividia em L. Um galho grosso crescia paralelo ao chão, e perpendicular ao restante dela. Outro, mais fininho, meio metro acima, paralelo ao primeiro, teimava em existir, apesar de ter sido quebrado tantas e tantas vezes por crianças teimosas em se dependurar ali. Era o galho ideal para pequenos medrosos: o máximo que podia acontecer era cair no galho grande abaixo dele, que provou ser bem forte quando colocamos toda a turma sentados, para uma foto.
Outro galho, estranhamente, fazia a forma de um quadrado. Até hoje ninguém sabe explicar porque um galho, de repente, fez um ângulo de 90 graus e cresceu paralelo ao tronco. Só sei que aquela janelinha às vezes virava banco, poltrona da espaçonave, palco para shows, etc. E como as folhas escondiam uma parte do tronco, criou-se ali um esconderijo, uma tábua secreta para escritos secretos. Era afastar um pouco as folhas e manuscritos, xingamentos, códigos e afins eram marcados com facas, giletes, estiletes e tudo que conseguisse arranhar a grossa casca da velha árvore.
Um item desse meu monumento infantil fazia alegria de pequenos travessos. Sua flor, quando apertada entre os dedos, soltava uma gosma, um líquido amarelado, da cor da flor, cujo cheiro era um tanto enjoativo. E quando chovia, toda a molecada da rua se “armava” de flores para “atirar” a gosma no inimigo mais próximo, qualquer que fosse ele.
Mas para mim, o mais importante dessa grande árvore era o que ela me fazia ver. Muitas vezes eu subia o mais alto que podia e ficava ali, apreciando o horizonte, a cidade, o campinho, o céu. Sentada em seus galhos, olhava longe, tentava ver meus sonhos e futuro.
De tanto conversar com esse ser vegetal, cheguei a fazer promessas. E pedia a Deus que me deixasse cumpri-las. “Quando eu for grande, e tiver altura para subir em você sem precisar do banquinho, você vai ver... Você vai me ver bonita, com amigos, com meus primos mais novos. Vou trazê-los aqui! Vou fazer faculdade, ter uma história só minha, um carro só meu, um dinheiro só meu. As pessoas vão me levar a sério! Terei minha própria bicicleta, e ninguém mais vai me mandar lavar louça. Vou aprender a tocar violão, e vou tocar pra você! E um dia, você vai ver, os meninos vão parar de caçoar de mim. Vou te apresentar meu namorado, um dia! Eu vou voltar, te abraçar e você ainda estará aqui, porque algumas coisas duram mais do que a gente!”
Um dia desses, numa das últimas vezes que passei por ali, a vi, sozinha. Parei o carro. Não conseguia desprender os olhos daquele tronco. Agora, minha cabeça estava na mesma altura que o grande galho. E sim, se quisesse, subiria nele com um simples pulo.
Toquei sua casca grossa, cada vez mais velha. O mesmo cheiro enjoativo. Dei a volta, subi no galho que outrora era meu mundo. Afastei as folhas. Estava ali, tudo estava ainda ali. Minhas iniciais e de meus amigos. A vista não é a mesma, já que construíram um prédio onde era um campinho.
Sorri. Me lembrei das brincadeiras, dos rostos. De como meus problemas eram pequenos, mas pareciam tão grandes, como essa árvore. E como as pequenas coisas boas fincaram raízes e duraram pra sempre, exatamente como a árvore.
Um carro parou atrás do meu.
— Ei, o que está fazendo aí?
—Minha amiga, como prometi... quero que conheça uma pessoa!
Isso eu sussurrei, claro. Não estava a fim de passar a imagem de uma louca que fala com árvores para o meu namorado.
— Vem cá, deixa eu te mostrar uma coisa!
Passamos bons minutos da tarde sentados no banco em frente ao tronco, eu contando causos infantis para um par de olhos atentos mais nos contornos de meu rosto que nos do discurso. Chegou a fingir ciúme quando o relato começou a narrar minhas desilusões amorosas pelo garoto da vila que brincava na árvore comigo.
— E isso tudo, só por causa de uma árvore?
— Não é uma árvore qualquer, é a minha árvore!
Fomos embora. Enquanto seu carro se afastava devagar por me esperar, olhei para ela da janela. É só uma árvore. Alguém que passe por ali e veja apenas um tronco velho será capaz de derrubá-la sem dor na consciência. Eu não. Tem tanto dela em mim, e tanto de mim nela, são tantas ferpas, e lágrimas, e fugas, e sorrisos, e histórias, e sonhos. Acima de tudo, uma grande lição: tudo é uma questão de perspectiva.
Minha pequena “grande árvore” é minha. Não que tenha sido eu que plantei, ou eu que reguei. Nem estive por perto sempre. Muito menos tenho o poder de protegê-la do destino certo que é sua derrubada. É minhas apenas porque, aos 25 anos, todo canto muito meu se torna só meu.
uau me lembrei agora da minha infancia da minha arvore ... a minha era uma goiabeira... qtas conversas.. ahhhhhh lindo
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