Estava
fresco. Era fim de ano, época em que os bons alunos passam o período escolar na
quadra, enquanto os atrasados roem as unhas nas aulas de reforço. Eu estava na
quadra.
Quieta
no meu canto, não estava ali para brincar. Andava com uma turma gente boa, mas
estudiosa no grupo só eu. Portanto, não tinha companhia, e minha apatia social
não me permitia tomar a iniciativa de conhecer gente nova. Muito menos no fim
do ano.
Curtia
o vento de primavera, me aquecia ao sol, pensava nas férias. Adorava passar
tempo à toa, mergulhada nas pequenas alegrias de um dia bonito e em meus
pensamentos.
Foi
quando vi uma rodinha judiando de um menino menor. Éramos a turma mais velha da
escola, época em que se começou a cursar a primeira parte e a segunda do ensino
fundamental em escolas distintas. Aqueles eram repetentes dando uma de
sabichões pra cima de um pequeno do primeiro ano.
Me
irritou. Quem eles pensam que são? Eu sou da turma mais velha da escola e não
judio dos mais novos! Esses sem-nada-pra-fazer, que burlam aulas e desrespeitam
os professores não têm o direito de descontar sua repetência e raiva no
pequeno. Não comigo por aqui!
Me
levantei resoluta. Tirei o moletom, amarrei na cintura. Todos me conheciam,
pois na época eu era moleca o suficiente para ser conhecida. Eu era a prodígio
que zuava a aula inteira e tirava boas notas.
—
Ei...
—
Fala Elisa, beleza?
—
O que cê tá fazendo?
—
Tirando uma com esse baixinho aqui...
O
pobre do menino abraçava a lancheira e tremia, com os olhos cheios d’água.
Encheu meu peito de compaixão e pena. E revolta. Pela primeira vez na vida, me
irei.
—
Deixem ele, gente!
—
É só pra ele aprender que se respeita mais velhos!
Essa
frase, vinda de quem eu sabia que gritava com professor, só fez ferver o sangue
em minhas veias. Fechei o punho, discretamente.
—
Paulinho, sério... deixa ele!
Apesar
de cantar de galo, Paulinho era um garoto medroso por natureza. Era só falar
mais grosso que ele tremia nas bases.
—
Elisa, to de boa, cara! To só cumprindo ordem!
—
Ordem de quem? Botar pilha nos pequenos? Cê é covarde, isso sim!
—
Ordem da Larissa.
Quem
suou frio dessa vez foi eu. Larissa era uma delinquente juvenil. Uma repetente,
sem família, criada pelo irmão mais velho, outro rebelde. Não que fosse o fim
do mundo. E não é um exemplar naturalista e determinista: hoje é gente boa,
formada em faculdade pública, dá aulas de educação física para menores
carentes. Mas na época...
Não
quis sair do salto em minha primeira manifestação de gente grande. Apesar de
tremer por dentro, fechei o punho com mais força, olhei em seus olhos e
perguntei:
—
E cadê ela?
Confesso
que minha esperança é que ela estivesse na sala de reforço, e que Paulinho
estivesse blefando. Não estava.
—
Falou de mim, guria?
Olhei
para trás, ela se aproximava prendendo o cabelo. Sempre foi muito bonita. Como
uma menina tão bonita poderia ser tão moleque, pensei. Apelei para a
diplomacia.
—
Falei, tava perguntando de você pro Paulinho aqui.
—
É, e o que tá pegando?
—
Falei pra ele que ia te contar a sacanagem que ele estava fazendo sem você
saber! Eu tenho certeza que não concorda em bater nos pequenos, não é?
—
Esse menino aí é mimado, cara! Vive perturbando com esses brinquedinhos cheios
de barulhinhos... e sabe né... fim de ano, tradição um apanhar! Não acha?
Olhei
para ela. Olhei para o Paulinho que ria atrás dela. Olhei para o pequeno que
tremia. Uma gota de suor frio escorreu em minha testa. Engoli seco. Lembrei de
Davi enfrentando Golias; de Jesus enfrentando Pilatos; de Daniel enfrentando o
rei.
—
Num acho, não. E ele vem comigo!
Enquanto
falava, andei em direção ao garoto, distante alguns metros, parei fitando a
monstro e coloquei o pequeno atrás de mim, enquanto segurava sua mãozinha. Ela tremia.
“Tadinho...”. Criei coragem.
—
Como é que é?
— Larissa, você não manda na escola, cara. E esse pequeno não fez nada.
Pra pegar ele, vai ter que me pegar primeiro!
—
Ah, sério?
Larissa
deu uns passos largos em minha direção. Eu virei para o menino e disse:
—
Vai embora, rápido!
Começamos
a correr. Eu corria nos passos dele, fazendo barreira para que Larissa não o
alcançasse primeiro. Não até chegar na porta do pátio. Assim que vi o menino se
esconder nas pernas da merendeira, fiz a curva e saí em disparada.
Eu
corria bem, por jogar bola desde pequena e por sempre ser centro-avante.
Larissa gritou e veio ao meu alcance. O monitor ouviu o grito e chamou o
professor de ginástica. Ele veio andando, dando tempo para ela me alcançar,
pular em minhas costas me fazendo rolar no chão. Me deu dois tapas, se levantou
e saiu correndo em direção à grade, em direção à rua. Nunca mais vi Larissa
pessoalmente.
Dolorida
e ralada, levantei sem fôlego. Apanhei, e todos riam. Numa escola pública não
querem saber o motivo por que você caiu. Se caiu, é bobo. Se apanhou, é trouxa.
Se apanhou da Larissa é porque deveria estar merecendo.
A
gozação geral da moçada, mais a dor dos ralados nas pernas, mais o Paulinho
rindo num canto provocaram em mim um misto de raiva e humilhação. Maldito
moleque, pensei. Por que não foi pra casa? Por que não foi esperto e fugiu
dela? Sentia raiva do pequeno, e do fato dele ser pequeno. Larissa não batia
nos meninos do tamanho dela, só nos pequenos.
Passei
no bebedouro para lavar o suor, as lágrimas e a raiva. Nunca mais, prometi,
meto o nariz onde não fui chamada. Nunca mais abraço a dor do outro. Nunca mais
peito os poderosos. Nunca mais...
Enquanto
fazia juras e jogava água fria no rosto, alguém me chamou.
—
Elisa... alguém quer falar com você mas está com vergonha...
A
voz da merendeira me fez virar. Um pequeno, com lágrimas nos olhos, tímido que
só, olhava para ela.
—
Vai lá, Calebe.
Ele
andou em minha direção, abriu os bracinhos. Eu me agachei e deixei o pequeno do
primeiro ano me abraçar. Não tremia mais. Passei a mão em seu cabelo suado.
—
Você tá bem, garoto?
—
Tô... brigadu!
Correu
em disparada, e voltou a brincar. Sorri.
Não
sei se valeu, Deus – pensei – e se eu tiver um filho, vai chamar Calebe. Sim,
eu queria ter a coragem de Davi, transformar a história de um povo. Eu queria
crescer e entrar para a história.
Crescer,
eu cresci. Não revolucionei nada. Mas envelheço com a alegria de saber que,
para um pequeno do primeiro ano chamado Calebe - que hoje deve ter seus 20 anos
- fui herói.