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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Meus 25 anos

Já ouvi de tudo. Que 25 é número de sorte e de azar. Que como sou do sexo feminino, não faz diferença ter 25 ou 24... Que me aproximo da melhor fase feminina, faltam apenas 5 para os 30. Que já tenho um quarto de século, e que ainda tenho, apenas, um quarto de século.

Já ouvi que estou ficando velha e preciso tomar cuidado para “não sobrar pra titia”. Já ouvi também que estou nova demais para casar, deveria fazer uma pós, um intercâmbio, comprar um imóvel...
Me falaram que o tempo é meu amigo, fico bela enquanto envelheço. Me falaram também para me cuidar, porque a beleza dos 17 não volta nunca mais.

Ouvi dizer que sou séria, sábia, centrada, responsável. Mas já me chamaram de moleca, divertida, criança-grande, melhor-amiga. Já fui decidida, mas aprendi a ser vacilante. Já fui fria e distante, já fui apaixonada e manhosa, já fui temperamental.

Já joguei no time da escola pra me sentir importante, já fui grande pensando ser inferior, e também já fui inferior pensando ser grande... Já ganhei amigos, perdi alguns, matei outros, guardei a maioria. Já pertenci, mas já fui peixe-fora-d’água.

Em 25 anos julguei os próximos zilhares de vezes, e mudei de opinião. Já tomei banho de chuva e de lama e de pétalas e de chocolate. E de mar... Enfrentei alguns medos, brinquei com outros, guardei alguns como souvenir. Falei com o sol, com a lua, e sozinha. Cantei de madrugada, passei noites em claro, durmi até tarde. Brinquei na rua, andei de patins, fiz guerra de amora, colecionei cicatrizes.

Já engordei por gula, por desleixo, por felicidade. Já emagreci por stress, por esporte e por vaidade. Já malhei por desespero e por prazer. Já pisquei para o bonito da escola, dei selinho por aposta, já gostei do melhor amigo (e de seus amigos), já namorei o cara errado, já amei...acho.

Já fui ignorada, paparicada, zombada, idolatrada, caçoada, respeitada, ferida, perdoada, esquecida, lembrada, “cantada” e ...cantada. Já abracei, já briguei, já brinquei, já chorei junto e sozinha, já menti, já fugi, já fiz sorrir, já encarei, já tropecei, já caí, já corri, já nadei, já voei, e morro de vontade de viajar no tempo. Já ganhei flores, já mandei flores. Já me arrependi de ter amado, e me arrependi de ter me arrependido.

Tenho de vida o que alguns têm de casados, ou de empresa. Creio, no fim, que melhor do que ter 25 anos de existência é ter existido por 25 anos.

Sempre quis ter 25 anos. Agora que tenho, não faço a menor ideia do que eles significam... Brincadeira, sei sim! Levei 25 anos pra saber.

sábado, 8 de outubro de 2011

“Um [outro] homem célebre”

Ele conseguiu. Vencendo obstáculos sociais, políticos, financeiros e literários, o pequeno Joaquim Maria Machado de Assis ultrapassou limites nunca antes pensados.

Descendente de escravos alforriados e portugueses, o mulato Machadinho, como ficou conhecido na tipografia que trabalhou nos primeiros anos, lutou anos a fio contra o estigma de sua cor e de sua classe. Filho de agregados, nascido e criado no Morro do Livramento – Rio de Janeiro, saiu de casa jovem em busca de espaço, de sustento e de identidade.

Cresceu em meio a personagens culturais ilustres de seu tempo, escrevia por prazer e por precisão. Afinal, viver de literatura e jornalismo nunca foi muito fácil, principalmente na sociedade estratificada brasileira do fim do século XIX.

Com o tempo, o garoto amadureceu sua escrita, sua imagem social e sua vida financeira. É notória a relação entre sua estabilização econômica, ao ser indicado a cargos públicos, e sua maturidade textual. Há quem diga que o “Memórias Póstumas de Brás Cubas” só foi possível após autoridade social e público cativo conquistados, que o permitiu dizer o que quisesse, inclusive zombar e criticar, sutilmente, à sua maneira, abalando os paradigmas ideológicos da classe dominante.

Machado de Assis venceu as barreiras sociais que impediam sua ascensão; venceu os estigmas que carregava na pele e se fez o maior escritor brasileiro através de meias palavras sugeridas ou não ditas, que diziam tudo. Sorrateiro, modesto, recatado, brincando de esconde-esconde com as verdades que não poderia dizer abertamente, o fundador da Academia Brasileira de Letras venceu, e foi levado nos braços do povo quando de seu falecimento.

Hoje, mais de cem anos após sua morte, Machado ressurge. Não nos livros, não nas inúmeras teses e estudos que levam seu nome, não nas escolas, nos seriados, nas adaptações. O ícone cultural entra nas casas dos brasileiros risonho, através da telinha da televisão.

Por ter sido um dos primeiros clientes da caderneta de poupança mais famosa do país, tem sua imagem reconstruída, reapresentada e repintada a todos os brasileiros, e ao mundo. O mulato gago e epilético, que venceu sua classe e o estigma de sua cor, ganhando espaço e a imortalidade através de pena tão característica, anda pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro de tempos atrás altivo, barba e cabelos encaracolados brancos... e pele branca.

Por essa, creio, nem ele esperava. Sua vitória é tamanha e total ao ponto de não importar sua imagem real. Basta que seja o Machado. Pois sua identidade está no que dizem dele, e na herança literária que deixou. O mulatinho fez escola e significa tanto para a tradição que pouco importa a verdade de fato. Machado, assim, incorpora, pós mortem, o que tentou mostrar, de forma salpicada e diversa, em todos os seus textos: é tudo uma questão de imagem e de papéis sociais. Ouso segurar a pena do mestre e, de forma machadiana, perguntar a você, bom leitor: o que importa?

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Do dia que quis ser herói


            Estava fresco. Era fim de ano, época em que os bons alunos passam o período escolar na quadra, enquanto os atrasados roem as unhas nas aulas de reforço. Eu estava na quadra.
            Quieta no meu canto, não estava ali para brincar. Andava com uma turma gente boa, mas estudiosa no grupo só eu. Portanto, não tinha companhia, e minha apatia social não me permitia tomar a iniciativa de conhecer gente nova. Muito menos no fim do ano.
            Curtia o vento de primavera, me aquecia ao sol, pensava nas férias. Adorava passar tempo à toa, mergulhada nas pequenas alegrias de um dia bonito e em meus pensamentos.
            Foi quando vi uma rodinha judiando de um menino menor. Éramos a turma mais velha da escola, época em que se começou a cursar a primeira parte e a segunda do ensino fundamental em escolas distintas. Aqueles eram repetentes dando uma de sabichões pra cima de um pequeno do primeiro ano.
            Me irritou. Quem eles pensam que são? Eu sou da turma mais velha da escola e não judio dos mais novos! Esses sem-nada-pra-fazer, que burlam aulas e desrespeitam os professores não têm o direito de descontar sua repetência e raiva no pequeno. Não comigo por aqui!
            Me levantei resoluta. Tirei o moletom, amarrei na cintura. Todos me conheciam, pois na época eu era moleca o suficiente para ser conhecida. Eu era a prodígio que zuava a aula inteira e tirava boas notas.
            — Ei...
            — Fala Elisa, beleza?
            — O que cê tá fazendo?
            — Tirando uma com esse baixinho aqui...
            O pobre do menino abraçava a lancheira e tremia, com os olhos cheios d’água. Encheu meu peito de compaixão e pena. E revolta. Pela primeira vez na vida, me irei.
            — Deixem ele, gente!
            — É só pra ele aprender que se respeita mais velhos!
            Essa frase, vinda de quem eu sabia que gritava com professor, só fez ferver o sangue em minhas veias. Fechei o punho, discretamente.
            — Paulinho, sério... deixa ele!
            Apesar de cantar de galo, Paulinho era um garoto medroso por natureza. Era só falar mais grosso que ele tremia nas bases.
            — Elisa, to de boa, cara! To só cumprindo ordem!
            — Ordem de quem? Botar pilha nos pequenos? Cê é covarde, isso sim!
            — Ordem da Larissa.
            Quem suou frio dessa vez foi eu. Larissa era uma delinquente juvenil. Uma repetente, sem família, criada pelo irmão mais velho, outro rebelde. Não que fosse o fim do mundo. E não é um exemplar naturalista e determinista: hoje é gente boa, formada em faculdade pública, dá aulas de educação física para menores carentes. Mas na época...
            Não quis sair do salto em minha primeira manifestação de gente grande. Apesar de tremer por dentro, fechei o punho com mais força, olhei em seus olhos e perguntei:
            — E cadê ela?
            Confesso que minha esperança é que ela estivesse na sala de reforço, e que Paulinho estivesse blefando. Não estava.
            — Falou de mim, guria?
            Olhei para trás, ela se aproximava prendendo o cabelo. Sempre foi muito bonita. Como uma menina tão bonita poderia ser tão moleque, pensei. Apelei para a diplomacia.
            — Falei, tava perguntando de você pro Paulinho aqui.
            — É, e o que tá pegando?
            — Falei pra ele que ia te contar a sacanagem que ele estava fazendo sem você saber! Eu tenho certeza que não concorda em bater nos pequenos, não é?
            — Esse menino aí é mimado, cara! Vive perturbando com esses brinquedinhos cheios de barulhinhos... e sabe né... fim de ano, tradição um apanhar! Não acha?
            Olhei para ela. Olhei para o Paulinho que ria atrás dela. Olhei para o pequeno que tremia. Uma gota de suor frio escorreu em minha testa. Engoli seco. Lembrei de Davi enfrentando Golias; de Jesus enfrentando Pilatos; de Daniel enfrentando o rei.
            — Num acho, não. E ele vem comigo!
            Enquanto falava, andei em direção ao garoto, distante alguns metros, parei fitando a monstro e coloquei o pequeno atrás de mim, enquanto segurava sua mãozinha. Ela tremia. “Tadinho...”. Criei coragem.
            — Como é que é?
— Larissa, você não manda na escola, cara. E esse pequeno não fez nada. Pra pegar ele, vai ter que me pegar primeiro!
            — Ah, sério?
            Larissa deu uns passos largos em minha direção. Eu virei para o menino e disse:
            — Vai embora, rápido!
            Começamos a correr. Eu corria nos passos dele, fazendo barreira para que Larissa não o alcançasse primeiro. Não até chegar na porta do pátio. Assim que vi o menino se esconder nas pernas da merendeira, fiz a curva e saí em disparada.
            Eu corria bem, por jogar bola desde pequena e por sempre ser centro-avante. Larissa gritou e veio ao meu alcance. O monitor ouviu o grito e chamou o professor de ginástica. Ele veio andando, dando tempo para ela me alcançar, pular em minhas costas me fazendo rolar no chão. Me deu dois tapas, se levantou e saiu correndo em direção à grade, em direção à rua. Nunca mais vi Larissa pessoalmente.
            Dolorida e ralada, levantei sem fôlego. Apanhei, e todos riam. Numa escola pública não querem saber o motivo por que você caiu. Se caiu, é bobo. Se apanhou, é trouxa. Se apanhou da Larissa é porque deveria estar merecendo.
            A gozação geral da moçada, mais a dor dos ralados nas pernas, mais o Paulinho rindo num canto provocaram em mim um misto de raiva e humilhação. Maldito moleque, pensei. Por que não foi pra casa? Por que não foi esperto e fugiu dela? Sentia raiva do pequeno, e do fato dele ser pequeno. Larissa não batia nos meninos do tamanho dela, só nos pequenos.
            Passei no bebedouro para lavar o suor, as lágrimas e a raiva. Nunca mais, prometi, meto o nariz onde não fui chamada. Nunca mais abraço a dor do outro. Nunca mais peito os poderosos. Nunca mais...
            Enquanto fazia juras e jogava água fria no rosto, alguém me chamou.
            — Elisa... alguém quer falar com você mas está com vergonha...
            A voz da merendeira me fez virar. Um pequeno, com lágrimas nos olhos, tímido que só, olhava para ela.
            — Vai lá, Calebe.
            Ele andou em minha direção, abriu os bracinhos. Eu me agachei e deixei o pequeno do primeiro ano me abraçar. Não tremia mais. Passei a mão em seu cabelo suado.
            — Você tá bem, garoto?
            — Tô... brigadu!
            Correu em disparada, e voltou a brincar. Sorri.
            Não sei se valeu, Deus – pensei – e se eu tiver um filho, vai chamar Calebe. Sim, eu queria ter a coragem de Davi, transformar a história de um povo. Eu queria crescer e entrar para a história.
            Crescer, eu cresci. Não revolucionei nada. Mas envelheço com a alegria de saber que, para um pequeno do primeiro ano chamado Calebe - que hoje deve ter seus 20 anos - fui herói.