Ele conseguiu. Vencendo obstáculos sociais, políticos, financeiros e literários, o pequeno Joaquim Maria Machado de Assis ultrapassou limites nunca antes pensados.
Descendente de escravos alforriados e portugueses, o mulato Machadinho, como ficou conhecido na tipografia que trabalhou nos primeiros anos, lutou anos a fio contra o estigma de sua cor e de sua classe. Filho de agregados, nascido e criado no Morro do Livramento – Rio de Janeiro, saiu de casa jovem em busca de espaço, de sustento e de identidade.
Cresceu em meio a personagens culturais ilustres de seu tempo, escrevia por prazer e por precisão. Afinal, viver de literatura e jornalismo nunca foi muito fácil, principalmente na sociedade estratificada brasileira do fim do século XIX.
Com o tempo, o garoto amadureceu sua escrita, sua imagem social e sua vida financeira. É notória a relação entre sua estabilização econômica, ao ser indicado a cargos públicos, e sua maturidade textual. Há quem diga que o “Memórias Póstumas de Brás Cubas” só foi possível após autoridade social e público cativo conquistados, que o permitiu dizer o que quisesse, inclusive zombar e criticar, sutilmente, à sua maneira, abalando os paradigmas ideológicos da classe dominante.
Machado de Assis venceu as barreiras sociais que impediam sua ascensão; venceu os estigmas que carregava na pele e se fez o maior escritor brasileiro através de meias palavras sugeridas ou não ditas, que diziam tudo. Sorrateiro, modesto, recatado, brincando de esconde-esconde com as verdades que não poderia dizer abertamente, o fundador da Academia Brasileira de Letras venceu, e foi levado nos braços do povo quando de seu falecimento.
Hoje, mais de cem anos após sua morte, Machado ressurge. Não nos livros, não nas inúmeras teses e estudos que levam seu nome, não nas escolas, nos seriados, nas adaptações. O ícone cultural entra nas casas dos brasileiros risonho, através da telinha da televisão.
Por ter sido um dos primeiros clientes da caderneta de poupança mais famosa do país, tem sua imagem reconstruída, reapresentada e repintada a todos os brasileiros, e ao mundo. O mulato gago e epilético, que venceu sua classe e o estigma de sua cor, ganhando espaço e a imortalidade através de pena tão característica, anda pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro de tempos atrás altivo, barba e cabelos encaracolados brancos... e pele branca.
Por essa, creio, nem ele esperava. Sua vitória é tamanha e total ao ponto de não importar sua imagem real. Basta que seja o Machado. Pois sua identidade está no que dizem dele, e na herança literária que deixou. O mulatinho fez escola e significa tanto para a tradição que pouco importa a verdade de fato. Machado, assim, incorpora, pós mortem, o que tentou mostrar, de forma salpicada e diversa, em todos os seus textos: é tudo uma questão de imagem e de papéis sociais. Ouso segurar a pena do mestre e, de forma machadiana, perguntar a você, bom leitor: o que importa?
Nenhum comentário:
Postar um comentário