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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Sonho de um morador das montanhas

Salmos 121
Incertezas. Caminhos tortos, as várias vias estranhas que percorremos para chegar a um ponto que, em linha reta, dispensaria menos tempo, energia, e cansaço. Por outro lado, o percurso, e seus percalços, tortuoso e sem nexo, acabou por dar as ferramentas necessárias para aproveitar das benesses que seu ponto de chegada prometia. É quando chegamos à conclusão que jamais seríamos capazes de chegar ali e entender o valor da conquista sem as lições do caminho percorrido.
Olhamos ao redor e temos a sensação que outras pessoas chegam ao mesmo lugar de forma mais fácil, em linha reta, como numa planície de brisa refrescante e andar seguro. Você não: precisou subir, e descer, a montanha inteira para, depois de chegar ao vale, concluir que poderia ter dado a volta lá embaixo!
E o que se ganha? Tempo perdido, arranhões, pernas cansadas. Ficaram no caminho percorrido a beleza e a força juvenis; as ilusões inocentes, as paixões pueris, o olhar despreocupado com os passos dados, a postura ereta; a bagagem, que se abriu mão por conta da necessidade de se livrar do peso: projetos, lembranças, discursos, certezas.
Vestido apenas com a roupa do corpo. Quase nu, na verdade, já que galhos e terra e chuva e subidas e descidas puíram as vestes outrora adornadas. A montanha tira de nós a possibilidade de proteger-nos e de nos escondermos. Ficam à mostra as verdades, a pele, os calos, o sangue pisado, as marcas, as linhas de nossa identidade, sem camuflagens. Afinal, depois de tudo, de sobreviver a cada dia, quem para pra pensar? Que sobrevivente se preocupa se está alinhado, abotoado, bem vestido, penteado? No fim, o que importa é continuar respirando. Um viajante experiente da montanha, sobrevivente de suas quedas e voltas e confusões, não se importa com o olhar crítico alheio. Se põe assim, olhos nos olhos, pele à mostra, quase nu. Entregue e vivo.
Mais velho, com o peso do conhecimento de que a vida não é tão fácil como acreditava, sem o riso fácil e bobo dos ingênuos, cheio de cicatrizes, dentro e fora de si, ao pisar a relva do pé do monte, para. Por um momento, olhar os alinhados que pegaram o caminho mais curto lhe causa irritação profunda. Parem de sorrir! E se lembra que aquele sorriso já esteve em seu rosto outrora. Poderia ser você a entrar no vale assim, jovem, inocente e sorridente. Mas a montanha...
Caminha lentamente. Sem acreditar que seja real, ergue os olhos e vê riachos, campinas, espaço aberto, ventos, clima ameno. Paz. Será que não está sonhando? Será que não vai acordar encolhido numa gruta, fugindo da chuva que castiga seus ombros, sonhando com o impossível? Está mesmo ali?
Caminha devagar até chegar ao centro do vale verde, ao pé do rio. Sente a água molhar dedos, pés, pernas... A corrente passa por sua pele lavando, sarando, levando consigo, vazão abaixo, o desgaste, a sujeira do caminho. O frescor da água lhe dá frescor na alma. Cheguei, até que enfim!, pensa. Respira fundo, sente o aroma de mata virgem, de terra úmida, de flores do campo aberto. Abre os olhos e acompanha minuciosamente o revoar dos pássaros, o nado dos peixes. Desfruta com um gozo indescritível o sabor das frutas, algumas doces, outras azedas, outras amargas. O que importa? O que vale é ter as frutas!
Anda descalço se permitindo sentir cada pedregulho, cada galho. Deixa que a grama alta roce e coce suas pernas. Deixa que os insetos pousem e incomodem com picadelas e zumbidos. Constrói seu refúgio debaixo de sol, com suor e canseira. Mas e daí?
No vale também chove, também há frio, também há perigos. Também há trabalho, dias e noites. A grama é macia às vezes, mas seca às vezes. O rio é limpo mas frio. No entanto, nada disso diminui a beleza e o estatuto de refúgio que tem esse lugar para sua existência. É o seu vale. Pertence a si, ansiosamente esperado. Era seu alvo, sua meta. O perdeu de vista tantas vezes, o esqueceu outras tantas, mas chegou, e tudo tem o seu valor. Um valor imenso!
Por outro canto da mesma campina andam os bem vestidos que deram a volta na montanha. Andam apressados para fugir da chuva, para se livrar dos mosquitos, para não pisar nas pedras, para não comer as frutas azedas e amargas, para não se arranharem nas flores. Ora, exclamam, isso aqui não é tão belo nem tão bom quanto diziam ser! Aqui também chove, a água do rio é fria, e todo esse pó? Bons tempos aqueles antes de chegar aqui! Viajantes, aproveitem, pois o caminho passa e o vale não é perfeito!, esbravejam, enquanto veem a grama alta roçar em suas vestes e rasgá-las, enquanto se preocupam em manter-se vestidos e apresentáveis.
Acordo de súbito. Encostada na parede fria da gruta, depois de uma noite pouco dormida, abro os olhos. A musculatura dolorida, as feridas ainda em cicatrização, a fadiga, tudo me lembra da verdade: cismei de subir a montanha. Levanto-me e caminho até o precipício. O dia está cinza, menos mal! Pelo menos não terei o sol causticante. Amparando-me numa árvore que cisma em manter-se em pé na encosta, vejo ao longe, lá embaixo, uma campina. O tapete verde, o riacho, as árvores. Ah, um dia... se sobreviver, talvez um dia chegue lá!
Um sorriso tênue se desenha em meu rosto. Não tão belo, não tão jovem, nem um pouco ingênuo e pueril. Marcado pelo tempo e pela montanha, volta a sorrir. Entro na gruta e deixo num canto mais um pouco da bagagem que carregava. Talvez, penso, diminuindo o peso, caminhe mais rápido. Talvez...
E assim, vestida da roupa do corpo, quase nua, com arranhões e cortes latejantes, desalinhada, desiludida, cansada, sobrevivente, experiente, me proponho a descer um pouco mais, metros a mais, montanha abaixo. Um dia chego, nem que demore, ao meu refúgio, ao meu lugar, ao meu vale. Com certeza vou achar que é mais um sonho. E com certeza a água fria, os mosquitos, as frutas azedas e amargas, as ferpas, a grama alta e os pedregulhos terão para mim muito valor. Um valor imenso!

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