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segunda-feira, 2 de maio de 2011

Ser capaz de sorrir

“Amar o outro que me faz metade” – Suerdes Viana

Incompletos. Nascemos assim. E temos a péssima mania de acharmos que não, somos um todo coeso, vivo e independente.

Independência. Afinal de contas, quem foi o narcisista que inventou este conceito? Um tanto utópico, diria que é uma filosofia Matrix. Isso mesmo, porque a maior parte do mundo em que vivemos é um outro inventado por nossos próprios conceitos, e pela leitura distorcida que fazemos da realidade. Adoramos os mundos paralelos, só nossos, moldados à nossa imagem e semelhança.

Não somos independentes. Nem completos. Sozinhos somos parte. Parte de um todo maior, mais complexo, e por isso mesmo, mais rico. Sozinhos somos apenas parte, pedaço, não inteiro, defeituoso e inútil. Qual a função da parte, a não ser fazer parte, pertencer?

Mas isto é o tomar consciência de algo com o qual nossa natureza narcísica entra em choque. Primeiro é preciso humildade. Não é muito fácil admitir que o universo não gira ao nosso redor, nós que giramos com ele. Ele não existe para nós, fazemos parte de suas engrenagens, apenas. Segundo, é preciso coragem para admitir nossa vulnerabilidade: o outro nos atinge, exatamente por não ser tão estranho a nós como imaginávamos; exatamente por nos ser complementar.

“Cara-metade”. Ô expressãozinha clichê! E falsa!! “Que calúnia... mal amada... nerdizinha revoltada da vida... pessimista!” Antes de ser apedrejada em praça pública, dai - me o direito de defesa.

Sim, é falsa. Porque não possuímos encaixe perfeito a nada nem a ninguém. E acreditar que sim também é narcísico. Que ousadia crer que um outro ser, tão complexo quanto você mesmo, será paralelo e complementar a você em todos os pontos! Também porque não somos uma peça imutável do quebra cabeça. Não somos os mesmos sempre. Não somos nem fixos, nem de papel.

Mas somos capacitados com poder cognitivo-passional. Somos capazes de construir mundos a partir do que temos. Somos capazes de viver Matrix conscientemente. Somos capazes de nos reinventar...e de escolher.

Ao nos perceber incompletos e carentes, buscamos o outro complementar. E quando cremos tê-lo encontrado, promulgamos pactos. De individualidade, de fidelidade, de sinceridade, de exclusividade, de permanência. E de fato, acabamos por crer na expressão clichê citada, e sorrimos por isso.

Mas o tempo, dádiva divina aos mortais incompletos em construção, um dia, a uns de forma cruel, a outros de maneira mais mansa, ensina a verdade que agora defendo: nada completa ninguém 100%, em 100% do tempo. O que fazer, então, se a essa altura, com compromissos selados e juras feitas, se descobre que o outro, a quem se prometeu ser metade, não é tão complementar como se imaginava? O que fazer quando percebemos que o outro não é feito à nossa imagem e semelhança, não responde às nossas expectativas fantasmas, nem cabe dentro de nossos castelos de areia?

Na maioria das vezes, perceber tal verdade é o golpe de estado que destrói todas as regras vigentes até então. Declaramos o estado de sítio nas relações e, em nome de um bem maior, anulamos todos os direitos conquistados. As promessas, alianças, compromissos são desfeitos num passe de mágica em nome da “felicidade”. Afinal, aprendemos em Matrix que “o importante é ser feliz”. Mesmo que nossa felicidade esteja fundamentada em conceitos virtuais, princípios “laranja”.

Nem nos preocupamos com o fato de que ser metade de alguém, ou fazer parte de algo, nos compromete. “Você é responsável por aquilo que cativa”. Se bem que, ser responsável, nos dias de hoje, está fora de moda. Mas isto é outra questão.

A questão aqui é amar um outro, complementar sim, mas não aos nossos moldes distorcidos, nem somente quando se encaixa em nossas expectativas egoístas. Amar por escolha deliberada e consciente de seus resultados e consequências. Ver a beleza de ser um pouco mais completo a partir de um outro, tão incompleto quanto. Ver a beleza de não ser plenamente metade, mas ainda assim completar. E ter o privilégio de ser eleita a metade faltante em outro alguém. Ter o privilégio de pertencer.

Conto nos dedos das mãos o número de pessoas que foram humildes o suficiente para admitir essa verdade, e para pagar o preço para vivê-la: amar o outro que nos faz metade de si, mesmo que não seja pleno...nem perfeitamente complementar ao nosso molde. E sorrir por isso.

2 comentários:

  1. Uma bela reflexão, Elisa!
    Esse é nosso grande desafio: amar o belo e o feio de um outro.

    Suerdes Viana

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  2. Suerdes, obrigada pela participação, e pelo diálogo!

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