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terça-feira, 4 de outubro de 2011

Do dia que quis ser herói


            Estava fresco. Era fim de ano, época em que os bons alunos passam o período escolar na quadra, enquanto os atrasados roem as unhas nas aulas de reforço. Eu estava na quadra.
            Quieta no meu canto, não estava ali para brincar. Andava com uma turma gente boa, mas estudiosa no grupo só eu. Portanto, não tinha companhia, e minha apatia social não me permitia tomar a iniciativa de conhecer gente nova. Muito menos no fim do ano.
            Curtia o vento de primavera, me aquecia ao sol, pensava nas férias. Adorava passar tempo à toa, mergulhada nas pequenas alegrias de um dia bonito e em meus pensamentos.
            Foi quando vi uma rodinha judiando de um menino menor. Éramos a turma mais velha da escola, época em que se começou a cursar a primeira parte e a segunda do ensino fundamental em escolas distintas. Aqueles eram repetentes dando uma de sabichões pra cima de um pequeno do primeiro ano.
            Me irritou. Quem eles pensam que são? Eu sou da turma mais velha da escola e não judio dos mais novos! Esses sem-nada-pra-fazer, que burlam aulas e desrespeitam os professores não têm o direito de descontar sua repetência e raiva no pequeno. Não comigo por aqui!
            Me levantei resoluta. Tirei o moletom, amarrei na cintura. Todos me conheciam, pois na época eu era moleca o suficiente para ser conhecida. Eu era a prodígio que zuava a aula inteira e tirava boas notas.
            — Ei...
            — Fala Elisa, beleza?
            — O que cê tá fazendo?
            — Tirando uma com esse baixinho aqui...
            O pobre do menino abraçava a lancheira e tremia, com os olhos cheios d’água. Encheu meu peito de compaixão e pena. E revolta. Pela primeira vez na vida, me irei.
            — Deixem ele, gente!
            — É só pra ele aprender que se respeita mais velhos!
            Essa frase, vinda de quem eu sabia que gritava com professor, só fez ferver o sangue em minhas veias. Fechei o punho, discretamente.
            — Paulinho, sério... deixa ele!
            Apesar de cantar de galo, Paulinho era um garoto medroso por natureza. Era só falar mais grosso que ele tremia nas bases.
            — Elisa, to de boa, cara! To só cumprindo ordem!
            — Ordem de quem? Botar pilha nos pequenos? Cê é covarde, isso sim!
            — Ordem da Larissa.
            Quem suou frio dessa vez foi eu. Larissa era uma delinquente juvenil. Uma repetente, sem família, criada pelo irmão mais velho, outro rebelde. Não que fosse o fim do mundo. E não é um exemplar naturalista e determinista: hoje é gente boa, formada em faculdade pública, dá aulas de educação física para menores carentes. Mas na época...
            Não quis sair do salto em minha primeira manifestação de gente grande. Apesar de tremer por dentro, fechei o punho com mais força, olhei em seus olhos e perguntei:
            — E cadê ela?
            Confesso que minha esperança é que ela estivesse na sala de reforço, e que Paulinho estivesse blefando. Não estava.
            — Falou de mim, guria?
            Olhei para trás, ela se aproximava prendendo o cabelo. Sempre foi muito bonita. Como uma menina tão bonita poderia ser tão moleque, pensei. Apelei para a diplomacia.
            — Falei, tava perguntando de você pro Paulinho aqui.
            — É, e o que tá pegando?
            — Falei pra ele que ia te contar a sacanagem que ele estava fazendo sem você saber! Eu tenho certeza que não concorda em bater nos pequenos, não é?
            — Esse menino aí é mimado, cara! Vive perturbando com esses brinquedinhos cheios de barulhinhos... e sabe né... fim de ano, tradição um apanhar! Não acha?
            Olhei para ela. Olhei para o Paulinho que ria atrás dela. Olhei para o pequeno que tremia. Uma gota de suor frio escorreu em minha testa. Engoli seco. Lembrei de Davi enfrentando Golias; de Jesus enfrentando Pilatos; de Daniel enfrentando o rei.
            — Num acho, não. E ele vem comigo!
            Enquanto falava, andei em direção ao garoto, distante alguns metros, parei fitando a monstro e coloquei o pequeno atrás de mim, enquanto segurava sua mãozinha. Ela tremia. “Tadinho...”. Criei coragem.
            — Como é que é?
— Larissa, você não manda na escola, cara. E esse pequeno não fez nada. Pra pegar ele, vai ter que me pegar primeiro!
            — Ah, sério?
            Larissa deu uns passos largos em minha direção. Eu virei para o menino e disse:
            — Vai embora, rápido!
            Começamos a correr. Eu corria nos passos dele, fazendo barreira para que Larissa não o alcançasse primeiro. Não até chegar na porta do pátio. Assim que vi o menino se esconder nas pernas da merendeira, fiz a curva e saí em disparada.
            Eu corria bem, por jogar bola desde pequena e por sempre ser centro-avante. Larissa gritou e veio ao meu alcance. O monitor ouviu o grito e chamou o professor de ginástica. Ele veio andando, dando tempo para ela me alcançar, pular em minhas costas me fazendo rolar no chão. Me deu dois tapas, se levantou e saiu correndo em direção à grade, em direção à rua. Nunca mais vi Larissa pessoalmente.
            Dolorida e ralada, levantei sem fôlego. Apanhei, e todos riam. Numa escola pública não querem saber o motivo por que você caiu. Se caiu, é bobo. Se apanhou, é trouxa. Se apanhou da Larissa é porque deveria estar merecendo.
            A gozação geral da moçada, mais a dor dos ralados nas pernas, mais o Paulinho rindo num canto provocaram em mim um misto de raiva e humilhação. Maldito moleque, pensei. Por que não foi pra casa? Por que não foi esperto e fugiu dela? Sentia raiva do pequeno, e do fato dele ser pequeno. Larissa não batia nos meninos do tamanho dela, só nos pequenos.
            Passei no bebedouro para lavar o suor, as lágrimas e a raiva. Nunca mais, prometi, meto o nariz onde não fui chamada. Nunca mais abraço a dor do outro. Nunca mais peito os poderosos. Nunca mais...
            Enquanto fazia juras e jogava água fria no rosto, alguém me chamou.
            — Elisa... alguém quer falar com você mas está com vergonha...
            A voz da merendeira me fez virar. Um pequeno, com lágrimas nos olhos, tímido que só, olhava para ela.
            — Vai lá, Calebe.
            Ele andou em minha direção, abriu os bracinhos. Eu me agachei e deixei o pequeno do primeiro ano me abraçar. Não tremia mais. Passei a mão em seu cabelo suado.
            — Você tá bem, garoto?
            — Tô... brigadu!
            Correu em disparada, e voltou a brincar. Sorri.
            Não sei se valeu, Deus – pensei – e se eu tiver um filho, vai chamar Calebe. Sim, eu queria ter a coragem de Davi, transformar a história de um povo. Eu queria crescer e entrar para a história.
            Crescer, eu cresci. Não revolucionei nada. Mas envelheço com a alegria de saber que, para um pequeno do primeiro ano chamado Calebe - que hoje deve ter seus 20 anos - fui herói.


Um comentário:

  1. vc foi um heroi... agora seu filho chamar Calebe não sei não.. amei essa cronica....bjs

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