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quinta-feira, 21 de junho de 2012

Anônimos - 1

Voltava cansada de um dia de trabalho e ainda teria horas no trem de São Paulo, no horário de pico. Me arrastava pela plataforma pensando se daria tempo de fazer alguma coisa com a baderna de casa, ao chegar.

"Mas que hora eu fui crescer,não? Onde eu estava com a cabeça que ser adulto é legal??" - pensava com meus botões. Torcia em conseguir sentar para, pelo menos, ler um pouco. Claro que não consegui!

Encostei-me num canto e observava os transeuntes e passageiros: todos cansados, com sono, doidos para chegar em casa, tomar um banho, comer alguma coisa e se lembrar do motivo que faz valer tanta canseira e sacrifício. Foi então que conheci três anônimos que mudaram meu dia e, talvez, minha história. Dois deles era um casal de idosos. Deixe-me explicar.

Com o tempo se aprende que em São Paulo, os rápidos sobrevivem, ou pelo menos, ficam mais inteiros. Ficava de olho para ver se alguém se levantava na próxima estação, até que meus pedidos foram atendidos. Sentei-me rapidamente. Logo em seguida eles entraram: um casal de idosos, negros (e por que isso é relevante? Já chego lá...), entrou conversando, uma malinha cada um. Vestiam-se simplesmente mas ordeiramente, roupas velhas, dava pra ver, mas com cheiro de amaciante - aquele cheiro de roupa de vó. 

Não saberia precisar, tampouco chutar, a idade dos dois - e aí entra a questão de serem negros. Quem conhece, ou é descendente afro, sabe que este povo resiste ao tempo. Aparentam ser muito mais jovens do que realmente são devido ao envelhecimento tardio, colaborado pela alta taxa de melanina na pele. Meu avô é assim, segundo motivo de eu prestar atenção, inconscientemente, no senhor.

Extremamente lúcidos, talvez outra característica da etnia,o senhor deixou que a esposa se sentasse ao meu lado.

- O senhor quer se sentar? - já ia me levantando.

- Não, pode ficar.

Fiquei. Por duas estações ouvi a conversa do casal. O diálogo corria em torno uma conhecida hospitalizada. Mas o que me impressionou não foi o conteúdo da conversa. Foi a forma.

Pareciam dois amigos de colégio conversando na saída. Ternura, leveza e naturalidade eram notáveis. Não havia olhares truncados, alfinetadas nas entrelinhas, comentários maldosos ou impacientes, coisas naturais de ser ver num relacionamento de muitos anos, quando as picuinhas tornam-se identidade e marcam todas as interações. Não. Ali estavam dois interactantes, pra usar o palavriado linguístico, abertos ao diálogo livre e solto. O prazer de apenas bater-papo e conhecer o outro. A conversa desinteressada típica da ingenuidade pré-adolescente. Amigos.

E o papo solto era costurados por observações carinhosas. "Hahaha... eu não disse a você, querido, que ela era mais forte do que parece? É verdade, Zú, e eu nem acreditei em você hein! É uma boa menina! Sim, eu acho que ela supera essa, não é? Sim... você quer mais salgadinho? Esse é tão gostoso, parece aquele da vendinha! Verdade? Deixa eu ver... parece mesmo! Pode comer, não é tão salgado! Nossa, se soubesse que era tão bom tinha comprado uns 50 desses, foi tão baratinho! Verdade. Sabe quem vai gostar dele? O Pedrinho! É mesmo! Será que a gente guarda um pouco pra ele? Eu acho que não, viu... vou comer tudo! Hehe.... Zú, só você! É esta a estação? Não, creio que ainda não. Ah, já ia me esquecendo... O quê? O sei José passou lá em casa te procurando ontem. É mesmo, marquei com ele e esqueci. Ai, querido, bem que pensei que estávamos esquecendo alguma coisa quando saímos... Não faz mal, me dê o celular que ligo pra ele. Boa ideia..."

Não conseguia tirar os olhos deles. Era fascinante! Até que notei várias pessoas me olhando atravessado. Foi então que percebí que estava sentada em cadeira preferencial. Levantei-me, me afastei e os observava de longe. O senhor sentou em meu lugar e continuou o papo, enquanto brincava com os dedos da senhora entre as mãos. Ela ria feito uma colegial ri das piadas sem graça de seu primeiro namoradinho. Foram falando futilidades e doçuras até desembarcarem. Os acompanhei sair do trem com um sorriso no rosto. Até então não tinha nenhum casal referência para mim, não que me deslumbrasse e me fizesse acreditar na pureza dos contos de fadas. Até agora... Aqueles dois anônimos serão, para sempre, meu alvo de vida.

Se chegar na idade deles, seja ela qual for, com tamanha cumplicidade e carinho, com tamanha leveza e ternura, com tal grau de lucidez, de saúde e de vida, e principalmente, de sabedoria, terá valido a pena todos os trens tomados a fim de ter condições de bancar um pequeno sonho: ser casal.

Mas o trem, não satisfeito e ignorando meu desprezo com sua pessoa, me deu outro presente. Observava a saída dos velhinhos quando entrou outra senhora, também negra, cheia de sacolas. A porta do trem fechou e ela começou a oferecer balas e chocolates por um real. Ambulante, esse povo, sofrido ou não, que ganha a vida nos trens da vida.

Meu olhar caiu nela, um pouco por lembrar a senhora anterior, não tanto pela cor da pele mas pelo brilho nos olhos. A mesma ternura estava lá, estampada num rosto sofrido, mais velho da vida que do tempo.

E ao contrário de todos os ambulantes que vi nos últimos dias, ela nãos nos olhava emburrada, não gritava automaticamente e passava pelas pessoas feito um robô com uma mensagem mecânica gravada: dois por um real. Não: ela sorria, olhava nos olhos das pessoas, puxava assunto. Brincou com a criança, deu uma bala a ela de graça. Conversava um a um, pedia licença com ternura, fazia piadas. Sorria mais com os olhos que com os lábios. E vendia doces no trem, atividade agora ilegal.

Eu, cansada, fim de dia, queria muito um chocolate. Coisas de mulher. Chamei a senhora, que vem devagar, calmamente, mas olhando para mim com o mesmo olhar que uma tia olha para o sobrinho querido.

- Olá, menina, boa tarde! Quer bala ou chocolate?

- Chocolate, por favor.

Dei uma nota de cinco reais.

- Quer tudo em chocolate?

- Não, apenas um.

- Certo, espere um pouco.

Abriu a bolsinha de fuxicos e começou a contar o troco, quando o dinheiro caiu.

- Ixe... to ficando velha - e riu de si mesma.

- Pode deixar que pego!

- Ah, obrigada. Aqui está... Deus te abençõe, viu! Boa noite!

Virou-se me deixando com um chocolate na mão e um coração adocicado. Gostinho de gente, de humano, de honra, de trabalho suado, de dignidade. Quase a chamei de volta para "comprar" outro chocolate e pedir para que ficasse com o troco. Mais 10min com aquela senhora e teria dado a ela os 10 reais que tinha na carteira. Esmola? Não... gratidão. Seria um "muito obrigado por existir". Quando criei coragem para fazer isso, ela descia na estação e cumprimentava uma criança na plataforma, mexendo em seus cabelos e dando bala de graça.

O trem partiu. Fui nele como quem voa no lombo de Pégasus: leve, leve.
      

Um comentário:

  1. Sensacional.. vc escreve de uma forma muito poetica e real me faz ver as cenas....me sinto parte do contexto....que o Senhor continue a te abençoar a cada dia

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