O mito é o nada que é tudo.
Fernando
Pessoa
1. O Marinheiro: introduções
A
primeira publicação de um autor diz muito a seu respeito. Quem já trabalhou com
edição de livros sabe que o cuidado com o primeiro título é grande, pois ele
ditará o tom da conversa entre autor e público, e autor e crítica. Para o autor
é importante, pois a primeira obra tem gosto de filho primogênito: tudo é novo
e realizador. Busca-se não errar, ser exemplar e começar bem. É, portanto, o
cartão de visitas. Claro que há quem erre no primeiro. Mesmo assim, os acertos
de uma vida literária sempre serão encontrados, em algum nível, ali, nas linhas
e entrelinhas da primeira obra.
O
grande nome da literatura moderna portuguesa não foge à regra. O Marinheiro de Fernando Pessoa, sua
estreia como autor literário, diz muito há que veio, e críticos veem no drama estático
o gérmen da loucura genial que lhe é peculiar, digo, a capacidade heteronímica.
E chamo loucura apenas como galhofa, tanto pela aproximação com a psicologia do
autor, como diálogo com o senso comum, de que os gênios têm um pouco de loucos.
A obra em
tela, texto que foge ao mesmo tempo que se aproxima do drama grego, é um tanto
difícil de captação na primeira leitura. Isso porque, desde o começo, dá sinais
da proposta que se afirma ao longo, tanto em seu conteúdo como na forma.
O
quadro pintado pela palavra (três veladoras num quarto redondo, num a-tempo,
aguardando o amanhecer e conversando enquanto velam) e principalmente o tom da
conversa das veladoras chocam de início um leitor afeto a textos dramáticos.
Não há ação, não há tempo ou contexto definidos, e, no decorrer do texto, os
diálogos, monotônicos e semelhantes, passam uma sensação crescente de vertigem,
de sonho. A realidade formal plasma-se. Se quiser prender-se na questão de qual
personagem fala o quê, não precisa de muito para desistir da empreitada. Ao
contrário do drama padrão, não somos capazes de visualizar cenas e personagens
distintos e autônomos. A começar pela falta de caracterização das personagens,
que nem nomes possuem, as falas passam a sensação onírica do mágico e da neblina,
do véu do sonho. O texto suspende a realidade do drama conhecido.
O
enredo também causa espanto. Afinal, o título não diz respeito a nenhum
personagem de fato, e sim a um personagem de sonho que sonha. Há planos
sobrepostos de realidades fictícias. Também não há conflito a ser resolvido,
tampouco lição moral. O enredo, em si, não diz nada além de parecer, à primeira
vista, de se tratar da conversa impregnada de sono e loucura, por que não, de
três veladoras em um castelo.
Chocante.
Um texto que nega seu gênero, que nada diz, difícil (ou impossível) de
entender, que a uma primeira leitura descuidada pode parecer sem nexo. Nada
comercial, diria um profissional de uma editora de grande porte, nos dias de
hoje. E Fernando Pessoa decidiu estrear sua obra literária com um texto assim.
Hoje
sabemos a que Fernando Pessoa veio. Sabemos? Buscamos saber. Pelo menos sua
genialidade artística é notória e atemporal, assim como sua obra. E se o fio
condutor, ou o cartão de visitas, de um autor está em sua primeira obra, o que O Marinheiro diz do modus operandi de seu autor?