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quarta-feira, 3 de julho de 2013

Fernando Pessoa e a questão do real_parte 1

 

O mito é o nada que é tudo.
Fernando Pessoa

1.     O Marinheiro: introduções

            A primeira publicação de um autor diz muito a seu respeito. Quem já trabalhou com edição de livros sabe que o cuidado com o primeiro título é grande, pois ele ditará o tom da conversa entre autor e público, e autor e crítica. Para o autor é importante, pois a primeira obra tem gosto de filho primogênito: tudo é novo e realizador. Busca-se não errar, ser exemplar e começar bem. É, portanto, o cartão de visitas. Claro que há quem erre no primeiro. Mesmo assim, os acertos de uma vida literária sempre serão encontrados, em algum nível, ali, nas linhas e entrelinhas da primeira obra.
            O grande nome da literatura moderna portuguesa não foge à regra. O Marinheiro de Fernando Pessoa, sua estreia como autor literário, diz muito há que veio, e críticos veem no drama estático o gérmen da loucura genial que lhe é peculiar, digo, a capacidade heteronímica. E chamo loucura apenas como galhofa, tanto pela aproximação com a psicologia do autor, como diálogo com o senso comum, de que os gênios têm um pouco de loucos.
A obra em tela, texto que foge ao mesmo tempo que se aproxima do drama grego, é um tanto difícil de captação na primeira leitura. Isso porque, desde o começo, dá sinais da proposta que se afirma ao longo, tanto em seu conteúdo como na forma.
            O quadro pintado pela palavra (três veladoras num quarto redondo, num a-tempo, aguardando o amanhecer e conversando enquanto velam) e principalmente o tom da conversa das veladoras chocam de início um leitor afeto a textos dramáticos. Não há ação, não há tempo ou contexto definidos, e, no decorrer do texto, os diálogos, monotônicos e semelhantes, passam uma sensação crescente de vertigem, de sonho. A realidade formal plasma-se. Se quiser prender-se na questão de qual personagem fala o quê, não precisa de muito para desistir da empreitada. Ao contrário do drama padrão, não somos capazes de visualizar cenas e personagens distintos e autônomos. A começar pela falta de caracterização das personagens, que nem nomes possuem, as falas passam a sensação onírica do mágico e da neblina, do véu do sonho. O texto suspende a realidade do drama conhecido.
            O enredo também causa espanto. Afinal, o título não diz respeito a nenhum personagem de fato, e sim a um personagem de sonho que sonha. Há planos sobrepostos de realidades fictícias. Também não há conflito a ser resolvido, tampouco lição moral. O enredo, em si, não diz nada além de parecer, à primeira vista, de se tratar da conversa impregnada de sono e loucura, por que não, de três veladoras em um castelo.
            Chocante. Um texto que nega seu gênero, que nada diz, difícil (ou impossível) de entender, que a uma primeira leitura descuidada pode parecer sem nexo. Nada comercial, diria um profissional de uma editora de grande porte, nos dias de hoje. E Fernando Pessoa decidiu estrear sua obra literária com um texto assim.
           Hoje sabemos a que Fernando Pessoa veio. Sabemos? Buscamos saber. Pelo menos sua genialidade artística é notória e atemporal, assim como sua obra. E se o fio condutor, ou o cartão de visitas, de um autor está em sua primeira obra, o que O Marinheiro diz do modus operandi de seu autor?

Fernando Pessoa e a questão do real_parte 3

13.     A real arte das palavras

“Enquanto a arte metafísica vê o Universo construído com idéias puras e absolutas, e a pintura, com cores, a arte poética será aquela que o considerar vestido de sílabas, organizado em frases.”
(Paul Valéry, “Carta a Mallarmé”)

“Desde os tempos antigos até as tentativas de vanguarda, a literatura se afaina na representação do real. O real não é representável e é porque os homens querem constantemente representá-lo que há uma história da literatura.”
 (Roland Barthes, “Aula” - 1988[1])


            Se a literatura é a tentativa de tradução da realidade, de compreensão ou expressão, Fernando Pessoa vai além. Para ele, a literatura é criadora de realidades, não apenas as literárias, mas as factuais. Pois para o autor, a metalinguagem, como diz Rinaldo Gama, é dupla: é uma arte que fala de si como criação e como criador. Os heterônimos são, nada menos, do que o drama de autores-personagens que debatem entre si o fazer poético. Portanto, Pessoa estava certo ao afirmar ser, basicamente, um poeta dramático. E também porque sabemos ser a genialidade do poeta português fruto de uma realidade psicológica particular: Fernando Pessoa construía realidades para si através da palavra desde pequeno, ao criar Chevalier Paes.
            Em O Marinheiro, o diálogo vira monólogo, as personagens e a cena teatral somem na bruma que as palavras das veladoras constroem. E de pronto, o texto diz a que veio seu autor: para criar um mundo ambíguo, onde a realidade e o mundo construídos pelas palavras tornam-se, metalinguisticamente, a única realidade possível. A realidade interna do sonho e da construção onírica; a realidade psicológica e os muitos eus de cada um; as realidades construídas pelas palavras e reconstrutoras da realidade factual, uma vez que palavras tornam-se paradigma, que por sua vez torna-se ação no mundo concreto; a visão plasmática e metalinguística da arte literária, é que Fernando Pessoa propunha desde o começo, desde seu texto de estreia.

Referências
Gagliardi, Caio.  A reflexividade discursiva em O Marinheiro, de Fernando Pessoa. Revista Pitágoras, 500 – vol. 1 – Outubro 2011 – pg 113. Disponível em: http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/article/download/11/25 Acesso em: 10 jun. 2013.
Gama, Rinaldo. Fernando Pessoa: Plural como o universo. Disponível em: http://www2.uol.com.br/entrelivros/reportagens/fernando_pessoa_plural_como_o_universo.html. Acesso em: 11 jun. 2013.

Pessoa, Fernando. O Marinheiro. Disponível em: http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/clle000163.pdf Acesso em: 05 jun. 2013.




[1] In: Gama, Rinaldo. Fernando Pessoa: Plural como o universo. Disponível em: http://www2.uol.com.br/entrelivros/reportagens/fernando_pessoa_plural_como_o_universo.html. Acesso em: 11 jun. 2013.

Fernando Pessoa e a questão do real_parte 2

1.     Metalinguagem, Heteronímia e Sonho

“Porque não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro,
e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?”

            Concordo com Caio Gagliardi[1] quando diz que esse é um dos momentos-chave do texto. O crescente pavor que rodeia as três veladoras tem sua causa dita: a possibilidade de que a realidade que conhecem seja uma construção, um sonho de um personagem de um sonho.
            O marinheiro, conta uma das veladoras, ao naufragar num país desconhecido, começa a imaginar um país para si, e chega ao ponto de ver, sentir e viver a realidade criada. Ao tentar lembrar-se do seu país de origem e de sua história real, não consegue, pois a realidade criada por ele, nesse ponto, é mais real a ele do que sua realidade.
            O sonho da veladora cria um personagem que sonha, que cria realidades a ponto de ser parte dela. E a veladora chega à indagação: e se ela mesma for criação do marinheiro? Realidades sobrepostas. A possibilidade da quebra do real é o que as apavorava, pois sua realidade, ao longo do texto, é cada vez mais dependente da palavra.

“TERCEIRA — Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...”               

            Vamos tentar organizar os planos: temos um autor real (Fernando Pessoa) que cria um autor persona que redige o texto de um drama. Neste drama temos personagens fictícios que não agem, mas falam para passar o tempo, e para exprimir uma realidade interna de sonho. Neste sonho temos um personagem fictício (plano 2) que sonha e cria realidades para si (plano 3). E a personagem inicial se pergunta se sua realidade conhecida não seria construção do personagem de seu sonho, invertendo assim os papéis.
            Temos aqui, nada menos, do que personagens-autores. Temos aqui a lógica da construção heteronímica de Fernando Pessoa, em seu texto de abertura.
            A palavra tem o poder de construir realidades, e a visão moderna de Pessoa plasma-as de tal forma a confundi-las.

“A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si [...] O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço [...] se torna uma questão de engenho, da imaginação e da capacidade humanas.”
(Zygmunt Bauman, “Prefácio. Ser leve e líquido”, Modernidade Líquida, p. 15-16)

            O tempo e o espaço da narrativa não são itens importantes, apenas referenciais. O que está em foco aqui é a palavra, sua forma de construção e capacidade de construção de realidades.
            Àquele capaz de criar realidades com palavras dá-se o nome de autor, e sua arte é o fazer literário. Portanto, o texto do autor português não fala de nada além de si próprio, a arte da palavra em foco metalinguístico.



[1] Caio Gagliardi. A reflexividade discursiva em O Marinheiro, de Fernando Pessoa. Revista Pitágoras, 500 – vol. 1 – Outubro 2011 – pg 113. Disponível em: http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/article/download/11/25. Acesso em: 10/11/2013

Amigos

"Assim como o ferro afia o ferro, o homem afia o seu companheiro." Pv. 27.17 - NVI

Não sou do tipo popular, dessas pessoas que vivem rodeadas de pessoas. Dessas que, ao pisarem em qualquer lugar público de grande movimentação, com certeza, terão alguém para cumprimentar. Conhecida e conhecedora de muitos, e por muitos. Cheia de contatos.

Não. Eu sou do tipo que, facilmente, mistura-se na multidão. Minha lista de amigos no facebook não é impressionante, minha lista de contatos no celular é vergonhosa, minha lista de amigos próximos é ínfima, minha lista de amigos íntimos então...

Mas (e sempre tem um "mas"), pode parecer antagônico, muita gente me conhece. Sim, porque dentro de meu círculo de convívio sou de certa forma pública. Para quem é ministro de louvor de cidade do interior, é natural ter pessoas que você nem sabe o nome saberem o seu. Só que saber o nome não é ser amigo.

A questão é que, no geral, minhas crises e vitórias são só minhas, e de meus pouquíssimos amigos íntimos. Portanto, dá para contar, em apenas uma mão, o número de pessoas que REALMENTE me conhece.

No entanto, sou uma garota privilegiada, e já disse isso. Dessa vez é porque, amigos ou não, sou rodeada de pessoas "gente boa", dessas que você se encanta ao chegar um pouquinho mais perto. E, o que é impressionante, muitos deles me consideram uma amiga, apesar de não me conhecerem tão bem. E têm a (boa) mania de me abençoar constantemente.

Um abraço, um "estou orando por você", um "garota, você é demais, sabia?", ou "e eu te acho uma pessoa tão grande!" inesperados, vindos de conversas informais, rodas de oração, e-mails, comentários de blog, são refrigérios para quem, como eu, tem a péssima mania de saber demais, de pensar demais e, geralmente, com seus próprios botões. Porque, às vezes, quietos entre livros e partituras, temos a sensação de que somos sozinhos demais (culpa de nosso eu casular). Bobagem!

Então pessoas simples e sinceras, com sorriso simples e sincero, aparecem do nada, trazendo abraços e elogios inesperados, e nos assombram. Depois do susto ("ela está falando de quem?"), sorrimos, com o coração acalentado e morno.

Não, os inteligentes possuem amigos; os líderes possuem amigos; os mais velhos possuem amigos; os quietos possuem amigos; os solitários também. E por incrível que pareça, os inteligentes-líderes-mais velhos-quietos-solitários como eu encontram amigos onde menos esperam. E somente porque Deus sabe que precisamos deles!

Foi o que meu dia rendeu.