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quarta-feira, 3 de julho de 2013

Fernando Pessoa e a questão do real_parte 2

1.     Metalinguagem, Heteronímia e Sonho

“Porque não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro,
e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?”

            Concordo com Caio Gagliardi[1] quando diz que esse é um dos momentos-chave do texto. O crescente pavor que rodeia as três veladoras tem sua causa dita: a possibilidade de que a realidade que conhecem seja uma construção, um sonho de um personagem de um sonho.
            O marinheiro, conta uma das veladoras, ao naufragar num país desconhecido, começa a imaginar um país para si, e chega ao ponto de ver, sentir e viver a realidade criada. Ao tentar lembrar-se do seu país de origem e de sua história real, não consegue, pois a realidade criada por ele, nesse ponto, é mais real a ele do que sua realidade.
            O sonho da veladora cria um personagem que sonha, que cria realidades a ponto de ser parte dela. E a veladora chega à indagação: e se ela mesma for criação do marinheiro? Realidades sobrepostas. A possibilidade da quebra do real é o que as apavorava, pois sua realidade, ao longo do texto, é cada vez mais dependente da palavra.

“TERCEIRA — Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...”               

            Vamos tentar organizar os planos: temos um autor real (Fernando Pessoa) que cria um autor persona que redige o texto de um drama. Neste drama temos personagens fictícios que não agem, mas falam para passar o tempo, e para exprimir uma realidade interna de sonho. Neste sonho temos um personagem fictício (plano 2) que sonha e cria realidades para si (plano 3). E a personagem inicial se pergunta se sua realidade conhecida não seria construção do personagem de seu sonho, invertendo assim os papéis.
            Temos aqui, nada menos, do que personagens-autores. Temos aqui a lógica da construção heteronímica de Fernando Pessoa, em seu texto de abertura.
            A palavra tem o poder de construir realidades, e a visão moderna de Pessoa plasma-as de tal forma a confundi-las.

“A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si [...] O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço [...] se torna uma questão de engenho, da imaginação e da capacidade humanas.”
(Zygmunt Bauman, “Prefácio. Ser leve e líquido”, Modernidade Líquida, p. 15-16)

            O tempo e o espaço da narrativa não são itens importantes, apenas referenciais. O que está em foco aqui é a palavra, sua forma de construção e capacidade de construção de realidades.
            Àquele capaz de criar realidades com palavras dá-se o nome de autor, e sua arte é o fazer literário. Portanto, o texto do autor português não fala de nada além de si próprio, a arte da palavra em foco metalinguístico.



[1] Caio Gagliardi. A reflexividade discursiva em O Marinheiro, de Fernando Pessoa. Revista Pitágoras, 500 – vol. 1 – Outubro 2011 – pg 113. Disponível em: http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/article/download/11/25. Acesso em: 10/11/2013

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