“Porque não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro,
e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?”
e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?”
Concordo
com Caio Gagliardi[1]
quando diz que esse é um dos momentos-chave do texto. O crescente pavor que
rodeia as três veladoras tem sua causa dita: a possibilidade de que a realidade
que conhecem seja uma construção, um sonho de um personagem de um sonho.
O
sonho da veladora cria um personagem que sonha, que cria realidades a ponto de
ser parte dela. E a veladora chega à indagação: e se ela mesma for criação do
marinheiro? Realidades sobrepostas. A possibilidade da quebra do real é o que
as apavorava, pois sua realidade, ao longo do texto, é cada vez mais dependente
da palavra.
“TERCEIRA — Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o
que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão
logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e
penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente... Tenho
um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta
desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com
consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta
escura, através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e
se é isto sem dúvida que sinto?...”
Vamos
tentar organizar os planos: temos um autor real (Fernando Pessoa) que cria um
autor persona que redige o texto de
um drama. Neste drama temos personagens fictícios que não agem, mas falam para
passar o tempo, e para exprimir uma realidade interna de sonho. Neste sonho
temos um personagem fictício (plano 2) que sonha e cria realidades para si
(plano 3). E a personagem inicial se pergunta se sua realidade conhecida não
seria construção do personagem de seu sonho, invertendo assim os papéis.
Temos
aqui, nada menos, do que personagens-autores. Temos aqui a lógica da construção
heteronímica de Fernando Pessoa, em seu texto de abertura.
A
palavra tem o poder de construir realidades, e a visão moderna de Pessoa
plasma-as de tal forma a confundi-las.
“A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados
da prática da vida e entre si [...] O tempo adquire história uma vez que a
velocidade do movimento através do espaço [...] se torna uma questão de
engenho, da imaginação e da capacidade humanas.”
(Zygmunt Bauman, “Prefácio. Ser leve e líquido”, Modernidade Líquida, p. 15-16)
O
tempo e o espaço da narrativa não são itens importantes, apenas referenciais. O
que está em foco aqui é a palavra, sua forma de construção e capacidade de construção
de realidades.
Àquele
capaz de criar realidades com palavras dá-se o nome de autor, e sua arte é o fazer literário. Portanto, o texto do autor
português não fala de nada além de si próprio, a arte da palavra em foco
metalinguístico.
[1]
Caio Gagliardi. A reflexividade
discursiva em O Marinheiro, de
Fernando Pessoa. Revista Pitágoras, 500 – vol. 1 – Outubro 2011 – pg 113. Disponível em: http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/article/download/11/25. Acesso em: 10/11/2013
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