Paródia de Lucas 7. 36-50
Levantei-me com o rosto quente, lágrimas escorriam em meu rosto enquanto eu revirava meus pertences a procura de meu bem mais valioso.
Ganhara aquele perfume como pagamento de meu trabalho ilícito: fingir o amor. Homens, de todas as idades, e de todas as classes, me procuravam. Alguns para saciar apenas a fome do corpo. Mas a maioria em busca de saciar a sede do coração. Homens que precisavam de prazer para fugir dos problemas, de sua impotência em ser quem gostariam de ser. Homens que precisavam esbanjar o dinheiro que tinham de sobra para se afirmarem. Homens que precisavam amontoar números de mulheres para se afirmarem. Outros sozinhos, doentes por dentro, buscavam em meus braços um refúgio, a volúpia que calaria os gritos sufocantes de seus corações feridos pela dor, pela carência, pela necessidade de serem amados, de fato. Precisavam de prazer, e de amor, mesmo que fingido. E eu o fingia a todos.
Quanto a mim, com o tempo, o vazio aumentou. Como dar aquilo que não se tem? Como saciar a sede se sou poço seco? E cada vez que recebia um presente caro pelos carinhos e carícias prestadas a ferida crescia. Porque depois, quem lidava com o desprezo, com o estigma de mulher menor e desprezível, era eu. Homens que estiveram em meus braços não podiam me honrar publicamente, tão pouco me sustentar, me dar nome e dignidade. Não podiam me perdoar a ponto de me elevar a eles. Eu, que fingia o amor que precisavam, não era amada, tão pouco tolerada.
Mas aquele homem era diferente. Ele não me olhou com desprezo ou nojo, nem vergonha. Poderia até ser minha carência fazendo-me ver o que não existia, mas toda vez que encontrava com este homem nas ruas era capaz de ver em seus olhos um brilho morno e aconchegante. Não era lascivo, esse olhar eu conhecia de longe. Tão pouco era apaixonado. Era os olhos de alguém que parecia me ver, pareciam sorrir para mim.
Por muitas vezes fugi desse olhar, mas depois de tudo o que ele fez, depois de alimentar pobres, dar ouvidos a humildes e enfrentar os homens importantes da cidade e sua hipocrisia, depois de ouvir de seus atos e sua fama eu tive a certeza de que aquele homem era ungido. Era um homem de Deus, no mínimo, mas diferentemente dos demais não me olhou com olhos repreensivos. Aquele homem de Deus não me odiava.
E essa certeza, a de que um profeta não me escorraçaria, foi o suficiente para trazer a coragem e a gratidão ao meu coração. Darei a ele o perfume mais caro, o servirei, pedirei sua misericórdia.
Pensava em tudo isso parada à porta da casa. Lá dentro, o homem que me tinha olhado com ternura e compaixão comia à mesa de um fariseu. Ele comia com fariseus e com beberrões... Ele curava feridas de leprosos, abraçava mendigos, curava cegos e moribundos. Aquele homem tinha algo que eu jamais conhecera até então: amor. Amor gratuito e sincero, despretensioso e sem preconceitos. Veja o que fez com Madalena? Poderia tê-la apedrejado, mas a perdoou. Veja o que fez com o publicano...
Enquanto pensava, vi pessoas ao seu redor. Alguns cochichavam, outros riam de suas afirmações. Alguns o olhavam com desprezo, outros com fascínio. Alguns o serviam, outros queriam ser servidos por ele. Alguns seriam capaz de o matar. Eu seria capaz de beijá-lo, se pudesse! Tantos foram os beijos falsos, e juras vazias! Mas este homem...
Algo estava acontecendo. A culpa de meus erros caiu sobre mim com um peso que jamais sentira antes. Por tantos anos dei desculpas a mim mesma dizendo que não poderia ser julgada, afinal a vida fora dura comigo, e essa era a opção que me restara. Não, era desculpa. Eu era culpada, e sabia disso! Culpada de pecados inomináveis! Um filme passou por minha cabeça, e senti nojo de mim. Era suja, e emporcalhava homens e suas famílias. Meu dinheiro era sujo, minha vida era suja, cheia de um amor falso e sujo. Muito mais sujo que seus pés...
Sentado à mesa, à moda dos judeus, seus pés ficavam em minha direção. Era um homem simples, com certeza caminhou para chegar ali, e suas sandálias traziam a poeira da rua. Um homem como ele não poderia sentar-se à mesa sujo daquela maneira! Um profeta honrado deveria, pelo menos, ter quem lhe lavasse os pés!
Não possuo a lembrança de meus movimentos. Só sei que me vi sentada a seus pés, limpando-os com o perfume caro que havia trazido para presenteá-lo. Um homem honrado... Foi quando percebi que ele não se movera. Ao contrário de qualquer outro em seu lugar, não me impediu de tocá-lo, tão pouco fazia pouco caso de mim. Deixou-me limpar seus pés como se eu fosse digna disso!
O turbilhão explodiu. Não conseguia conter as lágrimas. Eu, uma indigna, uma pária, uma pecadora, podia tocar e beijar os pés daquele homem que a tantos transformou, que tantos sinais e milagres deu a conhecer, que possuía tamanha notoriedade. Não era capaz de conter os soluços. Meus cabelos, tão bem cuidados para que pudessem atrair, agora limpavam e secavam os pés do homem mais incrível e divino que vira na vida. E fazia isso sem cogitar pagamento.
"Seus pecados estão perdoados!" Ao ouvir sua voz, levantei a cabeça e encontrei-me com seu olhar. Ele sorria para mim, e seu rosto brilhava como o sol. Amor jorrava de suas palavras, e naquele instante uma paz desconhecida inundou meu peito, sem explicação. Naquele momento, sem muita lógica, eu soube:
Ele me ama!
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