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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A poética a-poética

Ao dar entrada na papelada para casamento no cartório civil foram tantas as assinaturas - e risadas e gracejos e sorrisos - que fui capaz de não perceber que a atendente do balcão ficou com minha certidão de nascimento. Só percebi mais tarde, quando cheguei em casa, e por não conhecer o procedimento tomei o ocorrido como falha burocrática aliada à minha distração. Volto lá e pego depois, pensei. Foi então que descobri: o cidadão deixa de utilizar a certidão de nascimento porque ela é substituída pela de casamento.

Interessante... E minha cachola começou a funcionar.

Que coisa poética! Sim, porque posso afirmar que o casamento é a reescrita da existência. Ora, parece até que toda a vida vivida antes, protocolada apenas com a certidão de nascimento, é apagada, ou melhor, ressignificada a partir do momento em que o indivíduo é considerado um ser casado.

Não interessa mais onde nasceu, o nome da cidade, o nome do escrivão, do hospital. Não interessa quem foi que registrou, e se o registro foi feito logo a seguir do parto ou dias, meses, anos depois. Não importa com quantos quilos nasceu, nem os sonhos que despertou nos seus pais, e as responsabilidades consequentes. Não importa se foi fruto de amor de um casamento sadio, de um casamento falso, de um romance louco, de um descuido. Quem quer saber se seu pai era advogado ou gari? Se sua mãe era do lar ou médica?

O que importa, nesse momento, é que de alguma forma você sobreviveu à vida e decidiu reescrever sua existência ao lado de alguém que você escolheu (ou escolheram para você). Importa é que você ama e pretende afirmar esse amor publicamente. Importa que você entre para a família do noivo (sim, porque nossa sociedade ainda é patriarcal, afinal alguém aí já ouviu falar de noivo que assume o sobrenome da namorada?) e lhe dê herdeiros que perpetue o legado da clã.

Estou um tanto irônica para um noiva, não acham?

A questão é que esse texto poderia mesmo ser poético. Ou melhor, para ser mais literariamente justa, romântico. Com altos valores e sonhos, com ideologias e utopias, com idealizações e toques do sublime e no intangível. A manifestação do belo na terra.

E tudo que gira em torno de casamento convencional vem com a aura cor de rosa no pacote. O glamour da cerimônia, o tapete vermelho, a entrada triunfal, o vestido bufante, as palavras juradas. Tudo muito cavaleiresco. 

O problema é que estou, a cada dia, mais madura, mais simples, mais pé no chão e menos poética. E pasmem: mais feliz. Afinal, vou me casar, senhoras e senhores, e porque quero, e o que é o mais importante, com quem quero e quando quero.

Mas para mim, não é nada disso que faz desse tempo um dos mais doces de minha vida. Não recebo flores o tempo todo, nem declarações melosas, e apesar de me entupir de chocolate, apenas uso a ocasião por desculpa, porque a verdade é que sempre quis me entupir de chocolate apenas por adorar chocolate! Não: minha poética está bem a-poética. Na verdade, não deixa de ser poesia, mas foge às regras padrão.

Sabiam que em um casamento religioso com efeito civil os noivos só estão casados, de fato, quando entregam o livro de volta ao cartório, após assinarem na cerimônia, e recebem as certidões de casamento? É, só que isso tem o prazo máximo de 90 dias após a cerimônia religiosa. Sabem como é, tem gente que vai viajar de lua de mel, fica 20 dias no paraíso e esquece de questões práticas...

Muito bem: então quando, afinal de contas, começa o casamento? Na data da cerimônia? Depois dos 90 dias (será que é um tipo de período de experiência...? rs) para entrega do livro? Nas núpcias? E se formos levar a ferro e fogo (e meus pais já fizeram piada com isso) o certo não seria os noivos consumarem o casamento apenas com certidões em punho? Tipo... 90 dias depois?!

O que estou querendo dizer é que tudo isso é um tanto ambíguo, inclusive engraçado, para não dizer bizarro. O que é, afinal de contas, casamento, e quando alguém está, de fato, casado?

Há quem diga que é depois da igreja. Há quem diga que é depois do cartório. Há quem diga que é depois do sexo. Há quem diga que não é preciso nada disso (inclusive sexo... podem rir, eu deixo). E vamos parar com a palhaçada: por acaso casamento é = a relacionamento sexual??

Pois é, deu para perceber que sou um pouco contra-senso. Vou resumir o texto e dizer logo: para mim casamento é, ao mesmo tempo, um conjunto de coisas mas uma coisa só. Vou explicar.

Claro que tudo conta. A cerimônia de casamento é o rito de passagem social, afinal as pessoas precisam confirmar e atestar seu status de casado. E é legal, vai, ter a chance de colocar todo mundo que você gosta num único lugar, ao mesmo tempo! Família, tios, primos, amigos, colegas de trabalho, amigos de infância, gente que você não vê há anos.

Conta também a papelada no civil, porque é o que te dá direitos e coberturas, é o que protege legalmente a família. O casamento civil é quem dita herdeiros legais, direitos trabalhistas e sociais, etc.

E para quem crê, é super importante um culto. Uma celebração religiosa em que se consagre o relacionamento amoroso, base familiar. É importante e sadio.

Mas casamento não é apenas tudo isso. Porque todas essas coisas são acessórias. São tradições e burocracia. Festa, vestido, buquet, o corte da gravata, a viagem, tudo faz parte e é legal ter, mas são, apenas, acessórios (um tanto caros, inclusive!).

Porque o cerne é muito mais simples, e muito mais complexo. O cerne são dois indivíduos distintos tomando para si a responsabilidade de amar, de suprir, de amparar, de proteger, de investir, de dar suporte e de se comprometer com a vida do outro. E essa decisão é apenas deles.

É essa decisão que dita, ou deveria ditar, se existirá ou não um casamento de fato, tanto a cerimônia como o que vem depois dela. E para tomar essa decisão vai chão... E cada casal tem seu tempo, seu jeito, seus pilares. 

Então, senhoras e senhores, casamento começa antes, muito antes dos noivos se chamarem de noivos e começarem a gastar loucamente. E por isso há quem se case já estando casado há tempos, e há quem se case sem nunca se casar. Há casamentos que começam antes da cerimônia, outros depois dela. Alguns muito antes ou muito depois; outros em menos tempo. E há casamentos que não acontecem, mesmo depois da cerimônia, do cartório, nas núpcias.

Por isso, desculpem: creio que enganei vocês. Todos que irão à minha cerimônia de casamento não sabem, mas estou casada faz tempo, desde o momento em que decidi que estaria; desde o momento que decidi me comprometer. Estou casada desde antes do sim, do apartamento, dos gastos, da cerimônia, da papelada, das núpcias. Porque casamento não é uma data mágica que muda tudo, e sim algo que se constrói com o tempo, todos os dias. Guardamos a data social como lembrança, como marco, porque gostamos de ritos de passagens. O problema é quando o rito toma lugar da essência.

Quebra toda a poética, não? Mas não deixa de ser poético!


Nudez

"Cara, me senti nu agora!"

Alguém aí já ouviu essa expressão? Não? Vou explicar: sabe quando uma pessoa inesperadamente delata o que você sente e pensa, seus segredos mais íntimos, suas crises... Quando alguém fala alguma coisa que cai como luva e você se sente exposto, vulnerável? É nessas horas que cabe a expressão citada.

Pois é... A nudez é a experiência mais marcante do ser humano de transparência. Quando expomos nossa fragilidade, aquela que queremos esconder. Nossosdefeitos, nossas feridas, nossas regiões sensíveis. A roupa vira escudo, não apenas do corpo, mas principalmente da mente.

Deu pra perceber que não estou falando de nudez, pura e simplesmente. Muito menos de sexo. Estou falando da significação subconsciente que temos da sensação de nudez. A sensação de estar completamente exposto e vulnerável à crítica alheia. O medo de sermos descobertos (e essa palavra é sabiamente dupla).

"O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha." Gn 2.25.
"Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se" Gn 3.7.

O que mudou? Já ouvi gente usar esse texto para "satanizar" o sexo, associando a nudez do texto à relação íntima, automaticamente. Já ouvi absurdos que interpretam o pecado inicial como a primeira relação sexual feita no mundo. Ora, por favor! Dá para ser menos raso?

Posso estar errada, mas sou do tipo que acredita piamente que o homem, a espécie humana, é una. Vamos lá, estamos no século 21, não dá mais para engolir que somos divididos em três partes independentes entre si, que o mundo material é mau e um outro que o espiritual, etc, etc. Deus não criou almas: criou o homem. Assim: pele, ossos, músculos, sentidos, sentimentos, percepções, criatividade, caráter. E pretende restaurar TODAS as coisas (Apocalipse 21.5). Para mim, todas é todas, palavra absoluta.

Enfim... Creio, na verdade, que Deus nos trata como tratamos as crianças. Precisamos de metáforas para entender as coisas. E a melhor metáfora que Ele nos deu foi a realidade que conhecemos.

Sabemos que a grande questão bíblica é o relacionamento dos homens com Deus. E ali o relacionamento foi quebrado. E o erro humano estava exposto. É a mesma sensação de quando você pisa na bola com um grande amigo seu, e cai a ficha da burrada que você fez. Sabe quando fica aquele clima esquisito? Pior, sabe quando tudo continua como se nada tivesse acontecido, mas no fundo você sabe? E com o tempo, não sabendo como tratar aquilo, vira uma sujeira embaixo do tapete, que você tem vergonha de expor, de admitir? E sente-se ameaçado o tempo todo pensando que uma hora isso vem à tona?

Pois é: quando temos do que nos envergonhar nossa reação é fugir. Sair correndo e nos esconder, igual à reação de Adão. Somos todos assim, meio infantis. E fazemos isso de várias maneiras: não tocando no assunto, fingindo que não tem importância...

O que aconteceria se esse amigo nos confrontasse, e não tivéssemos mais desculpas ou como escapar do papo? E se alguém, um dia, dissesse exatamente o que você teria escondido de todos a tanto tempo, expondo seus segredos assim, até sem querer? Sabe aquele feedback que te deixa sem chão? Exato. E como você se sentiu?

Nu.

E é disso que fugimos. Fugimos da vergonha de ter que admitir quem somos. Fugimos como crianças assustadas que somos das consequências da vida, da dor resultante. Não queremos nos expor, não queremos nos humilhar, não queremos nos sentir vulneráveis, e quanto menos souberem menor o risco.

É dessa nudez que estou falando.

E tudo isso para dizer que descobri um detalhe bíblico que está lá, desde o começo, e que a gente não lê: o caráter de Deus sempre O levará a nos fazer roupas.

Ele confronta, claro. Não nos deixa fugir do problema. Nunca deixou. Ele olhou nos olhos de Adão e disse "Quem disse que você estava nu?" Ele olhou nos olhos de Pedro e disse "Pedro, você me ama?". O Senhor não nos deixa fugir. Mas também não expõe nossa vergonha. A intenção dele não é pisotear em nossa vulnerabilidade, nos machucar como um sádico soberano. Não: ele confronta para sabermos que Ele sabe. E para sabermos quem Ele é.

Deus decide nos fazer roupas. Ele decide que nem nós, nem Ele, nem mais ninguém verá nossa nudez. Devolve-nos a dignidade ao decidir tratar e jogar a vergonha no fundo do oceano.

"O Senhor Deus fez roupas de pele e com elas vestiu Adão e sua mulher." Gênesis 3.21.
"Porque eu lhes perdoarei e não me lembrarei mais dos seus pecados" Hebreus 8. 12
"Estes são os que vieram da grande tribulação e lavaram suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro" Apocalipse 7.14
"Vistam toda a armadura de Deus para poderem ficar firmes contra as ciladas do Diabo" Efésios 6.11a.

Ele nos veste, sempre. De dignidade, de honra, de santidade, de bênçãos, de vida abundante. Sem merecermos, a questão não é mérito. Na verdade é, mas não o nosso.

A questão é que Ele mesmo foi posto no madeiro. Nu. E deixou em seu testamento, para nós, suas próprias roupas.


Adorador vs fariseu



Só está apto a adorar aqueles que sabem que não são dignos de estarem ali. Claro que não posso restringir adorador=participante de uma equipe de louvor. Vou focar neles (em nós), mas o princípio se aplica a todos.

Repetindo: só está apto a adorar aqueles que sabem que não são dignos de estarem ali.

E digo ali não apenas na frente de todo mundo; ali não apenas sendo exemplo para pessoas; ali não apenas como canal de uma mensagem cujo poder de impacto vai além de nossa limitada noção de poder. Não, a questão é maior. Porque ao se colocar diante de homens em nome de Deus, há também uma enorme plateia invisível. Seres capazes de destruir o ser humano, inclusive muito a fim disso. Outros, seres capazes do impossível em nome do Altíssimo, com espadas em punho. Anjos e demônios, creia-se neles ou não.

Não apenas, ainda, por isso. Há uma outra plateia, invisível e perceptível apenas pela fé que dá a certeza das coisas que não se veem. Homens e mulheres, de diversos tempos e eras, que serviram ao mesmo Deus, que você diz servir, com excelência, alguns dando a vida por isso. Milhares e milhares de testemunhas, uma nuvem delas, olhos dos céus direcionados ao agir de Deus na Terra, e seus instrumentos. E não para por aí: se a criação geme aguardando a manifestação dos eleitos, temos o cosmos de orelha em pé. E óbvio, não menos importante, o próprio Deus, em pessoa, habitando dentro de você e querendo se manifestar através de você.

Um peso gigante? Não. Uma responsabilidade gigante? Com certeza! Um privilégio extraordinário? Sem dúvidas! E todos sabem a diferença entre cantores e adoradores. É inconfundível. E sabemos que a mesma pessoa é capaz de ser, ora cantor, ora adorador. Eu sei, já fui os dois.

Mas só está apto a adorar, mesmo, aqueles que sabem que não são dignos de estarem ali. Aqueles que veem Alguém grande o suficiente digno de adoração, de veneração, de temor, de gratidão, de amor. Porque os verdadeiros adoradores não apenas temem o Todo-Poderoso, mas também o conhecem intimamente. Sabem de suas feridas íntimas saradas por Ele; sabem de suas lutas diárias travadas juntos; sabem de suas conquistas secretas; sabem que erram sempre, mas nunca são deixados para trás, apesar de merecerem.

Posso estar sendo ousada aqui, e digo que o que afirmarei é apenas interpretação minha provinda de minha experiência. Mas ouso dizer que só está apto a adorar quem sabe, na pele, o que é ter e não ter acesso à graça.

O perdão divino cria adoradores; a lei fria cria fariseus.


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Simples assim


Dois troncos de madeira sobrepostos em ângulo de 90°. Uns dois metros de corda grossa. 3 grandes pregos. Um buraco no chão.

Simples assim, e está montado o palco da pior tortura de todas as inventadas pelo homem. A pior morte, dada aos piores indivíduos da sociedade. Assassinos; traidores; sociopatas; pedófilos; ladrões; hereges. A escória é posta no alto sob vergonha, nua e dolorida, para que se zombe dela, e para servir de exemplo.

Roma. O maior império de todos os tempos. Principalmente pelo legado que deixou à humanidade, até os dias de hoje. A cultura, a política, a ciência, a estratégia: herdamos tudo. Seus líderes expuseram no madeiro milhares ao longo da história. Era prática comum e corriqueira. Cruel, suja e familiar. Espetáculo de horrores que servia a seu propósito: demonstrar força. "Isso é o que se faz aos opositores do império". Estavam lá, vira-e-mexe, cheias de corpos estendidos. Nomes apagados.

Não sabemos de suas histórias. Se eram, mesmo, dignos de morte, ou apenas tiveram o azar de serem as pessoas erradas na hora errada. Em Ben Hur vemos uma cena de crucificação coletiva. Mas não sabemos seus nomes, e em nada suas mortes influenciam nossas vidas, a não ser pela nota de história no colégio.

Não todas.

"Abafem a história". Não está escrito exatamente isso, mas poderia estar. Para os governantes que crucificaram o agitador nazareno, popular e pobre, era essa a intenção. "Abafem a história, matem seus seguidores fanáticos, que daqui a alguns anos ele será só mais um numa cruz, e eles, só mais um bando fanáticos".

Pois é, não deu. Ao tentar apagar o fogo, Roma ofereceu o ingrediente que faltava para que se alastrasse para todos os lados, em todas as direções do território e do tempo. E como diz o ditado "Se não puder contra seus inimigos, junte-se a eles."...

Dois troncos de madeira sobrepostos em ângulo de 90°. Uns dois metros de corda grossa. 3 grandes pregos. Um buraco no chão. Simples assim.

E por que, afinal de contas, aquele judeu foi diferente de todos os outros? Por que aquela cruz foi diferente de todas as outras, a ponto de virar símbolo de fé e de vida de milhões e milhões de pessoas?

Bom, porque aquele era um judeu ousado. A ele não bastou morrer: tinha que se proclamar Deus! E pior, tinha que sair dessa vivo! "Isso é o que dizem... Mas provar...". Tem razão. Tudo é uma questão de "veja bem...".

A questão é que, se aquele homem era Deus, seus carrascos e contemporâneos presenciaram algo indizível e inconcebível ao pior dos loucos: um deus que desce à terra e se deixa morrer por amor. Estavam diante de Deus sendo morto por sua criação, para que essa mesma criação vivesse, apesar de não merecer. É uma mudança tão drástica de pressupostos, e do que a humanidade conhecia por verdade, tão absurdo, que choca.

Choca tanto que impõe uma escolha: ou creia no absurdo, ou decida negá-lo com todas as forças. Não há meio termo. Não há saída. Deus não deixou brecha. Quando foi para ser radical, Ele caprichou. Não temos para onde ir: ou caímos de joelhos em prantos boquiabertos, ou zombamos virando as costas. Não dá para ser neutro, é impactante demais.

Dois troncos de madeira sobrepostos em ângulo de 90°. Uns dois metros de corda grossa. 3 grandes pregos. Um buraco no chão. Duas palavras:

"Está consumado."

Simples assim.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Fernando Pessoa e a questão do real_parte 1

 

O mito é o nada que é tudo.
Fernando Pessoa

1.     O Marinheiro: introduções

            A primeira publicação de um autor diz muito a seu respeito. Quem já trabalhou com edição de livros sabe que o cuidado com o primeiro título é grande, pois ele ditará o tom da conversa entre autor e público, e autor e crítica. Para o autor é importante, pois a primeira obra tem gosto de filho primogênito: tudo é novo e realizador. Busca-se não errar, ser exemplar e começar bem. É, portanto, o cartão de visitas. Claro que há quem erre no primeiro. Mesmo assim, os acertos de uma vida literária sempre serão encontrados, em algum nível, ali, nas linhas e entrelinhas da primeira obra.
            O grande nome da literatura moderna portuguesa não foge à regra. O Marinheiro de Fernando Pessoa, sua estreia como autor literário, diz muito há que veio, e críticos veem no drama estático o gérmen da loucura genial que lhe é peculiar, digo, a capacidade heteronímica. E chamo loucura apenas como galhofa, tanto pela aproximação com a psicologia do autor, como diálogo com o senso comum, de que os gênios têm um pouco de loucos.
A obra em tela, texto que foge ao mesmo tempo que se aproxima do drama grego, é um tanto difícil de captação na primeira leitura. Isso porque, desde o começo, dá sinais da proposta que se afirma ao longo, tanto em seu conteúdo como na forma.
            O quadro pintado pela palavra (três veladoras num quarto redondo, num a-tempo, aguardando o amanhecer e conversando enquanto velam) e principalmente o tom da conversa das veladoras chocam de início um leitor afeto a textos dramáticos. Não há ação, não há tempo ou contexto definidos, e, no decorrer do texto, os diálogos, monotônicos e semelhantes, passam uma sensação crescente de vertigem, de sonho. A realidade formal plasma-se. Se quiser prender-se na questão de qual personagem fala o quê, não precisa de muito para desistir da empreitada. Ao contrário do drama padrão, não somos capazes de visualizar cenas e personagens distintos e autônomos. A começar pela falta de caracterização das personagens, que nem nomes possuem, as falas passam a sensação onírica do mágico e da neblina, do véu do sonho. O texto suspende a realidade do drama conhecido.
            O enredo também causa espanto. Afinal, o título não diz respeito a nenhum personagem de fato, e sim a um personagem de sonho que sonha. Há planos sobrepostos de realidades fictícias. Também não há conflito a ser resolvido, tampouco lição moral. O enredo, em si, não diz nada além de parecer, à primeira vista, de se tratar da conversa impregnada de sono e loucura, por que não, de três veladoras em um castelo.
            Chocante. Um texto que nega seu gênero, que nada diz, difícil (ou impossível) de entender, que a uma primeira leitura descuidada pode parecer sem nexo. Nada comercial, diria um profissional de uma editora de grande porte, nos dias de hoje. E Fernando Pessoa decidiu estrear sua obra literária com um texto assim.
           Hoje sabemos a que Fernando Pessoa veio. Sabemos? Buscamos saber. Pelo menos sua genialidade artística é notória e atemporal, assim como sua obra. E se o fio condutor, ou o cartão de visitas, de um autor está em sua primeira obra, o que O Marinheiro diz do modus operandi de seu autor?

Fernando Pessoa e a questão do real_parte 3

13.     A real arte das palavras

“Enquanto a arte metafísica vê o Universo construído com idéias puras e absolutas, e a pintura, com cores, a arte poética será aquela que o considerar vestido de sílabas, organizado em frases.”
(Paul Valéry, “Carta a Mallarmé”)

“Desde os tempos antigos até as tentativas de vanguarda, a literatura se afaina na representação do real. O real não é representável e é porque os homens querem constantemente representá-lo que há uma história da literatura.”
 (Roland Barthes, “Aula” - 1988[1])


            Se a literatura é a tentativa de tradução da realidade, de compreensão ou expressão, Fernando Pessoa vai além. Para ele, a literatura é criadora de realidades, não apenas as literárias, mas as factuais. Pois para o autor, a metalinguagem, como diz Rinaldo Gama, é dupla: é uma arte que fala de si como criação e como criador. Os heterônimos são, nada menos, do que o drama de autores-personagens que debatem entre si o fazer poético. Portanto, Pessoa estava certo ao afirmar ser, basicamente, um poeta dramático. E também porque sabemos ser a genialidade do poeta português fruto de uma realidade psicológica particular: Fernando Pessoa construía realidades para si através da palavra desde pequeno, ao criar Chevalier Paes.
            Em O Marinheiro, o diálogo vira monólogo, as personagens e a cena teatral somem na bruma que as palavras das veladoras constroem. E de pronto, o texto diz a que veio seu autor: para criar um mundo ambíguo, onde a realidade e o mundo construídos pelas palavras tornam-se, metalinguisticamente, a única realidade possível. A realidade interna do sonho e da construção onírica; a realidade psicológica e os muitos eus de cada um; as realidades construídas pelas palavras e reconstrutoras da realidade factual, uma vez que palavras tornam-se paradigma, que por sua vez torna-se ação no mundo concreto; a visão plasmática e metalinguística da arte literária, é que Fernando Pessoa propunha desde o começo, desde seu texto de estreia.

Referências
Gagliardi, Caio.  A reflexividade discursiva em O Marinheiro, de Fernando Pessoa. Revista Pitágoras, 500 – vol. 1 – Outubro 2011 – pg 113. Disponível em: http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/article/download/11/25 Acesso em: 10 jun. 2013.
Gama, Rinaldo. Fernando Pessoa: Plural como o universo. Disponível em: http://www2.uol.com.br/entrelivros/reportagens/fernando_pessoa_plural_como_o_universo.html. Acesso em: 11 jun. 2013.

Pessoa, Fernando. O Marinheiro. Disponível em: http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/clle000163.pdf Acesso em: 05 jun. 2013.




[1] In: Gama, Rinaldo. Fernando Pessoa: Plural como o universo. Disponível em: http://www2.uol.com.br/entrelivros/reportagens/fernando_pessoa_plural_como_o_universo.html. Acesso em: 11 jun. 2013.

Fernando Pessoa e a questão do real_parte 2

1.     Metalinguagem, Heteronímia e Sonho

“Porque não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro,
e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?”

            Concordo com Caio Gagliardi[1] quando diz que esse é um dos momentos-chave do texto. O crescente pavor que rodeia as três veladoras tem sua causa dita: a possibilidade de que a realidade que conhecem seja uma construção, um sonho de um personagem de um sonho.
            O marinheiro, conta uma das veladoras, ao naufragar num país desconhecido, começa a imaginar um país para si, e chega ao ponto de ver, sentir e viver a realidade criada. Ao tentar lembrar-se do seu país de origem e de sua história real, não consegue, pois a realidade criada por ele, nesse ponto, é mais real a ele do que sua realidade.
            O sonho da veladora cria um personagem que sonha, que cria realidades a ponto de ser parte dela. E a veladora chega à indagação: e se ela mesma for criação do marinheiro? Realidades sobrepostas. A possibilidade da quebra do real é o que as apavorava, pois sua realidade, ao longo do texto, é cada vez mais dependente da palavra.

“TERCEIRA — Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...”               

            Vamos tentar organizar os planos: temos um autor real (Fernando Pessoa) que cria um autor persona que redige o texto de um drama. Neste drama temos personagens fictícios que não agem, mas falam para passar o tempo, e para exprimir uma realidade interna de sonho. Neste sonho temos um personagem fictício (plano 2) que sonha e cria realidades para si (plano 3). E a personagem inicial se pergunta se sua realidade conhecida não seria construção do personagem de seu sonho, invertendo assim os papéis.
            Temos aqui, nada menos, do que personagens-autores. Temos aqui a lógica da construção heteronímica de Fernando Pessoa, em seu texto de abertura.
            A palavra tem o poder de construir realidades, e a visão moderna de Pessoa plasma-as de tal forma a confundi-las.

“A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si [...] O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço [...] se torna uma questão de engenho, da imaginação e da capacidade humanas.”
(Zygmunt Bauman, “Prefácio. Ser leve e líquido”, Modernidade Líquida, p. 15-16)

            O tempo e o espaço da narrativa não são itens importantes, apenas referenciais. O que está em foco aqui é a palavra, sua forma de construção e capacidade de construção de realidades.
            Àquele capaz de criar realidades com palavras dá-se o nome de autor, e sua arte é o fazer literário. Portanto, o texto do autor português não fala de nada além de si próprio, a arte da palavra em foco metalinguístico.



[1] Caio Gagliardi. A reflexividade discursiva em O Marinheiro, de Fernando Pessoa. Revista Pitágoras, 500 – vol. 1 – Outubro 2011 – pg 113. Disponível em: http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/article/download/11/25. Acesso em: 10/11/2013

Amigos

"Assim como o ferro afia o ferro, o homem afia o seu companheiro." Pv. 27.17 - NVI

Não sou do tipo popular, dessas pessoas que vivem rodeadas de pessoas. Dessas que, ao pisarem em qualquer lugar público de grande movimentação, com certeza, terão alguém para cumprimentar. Conhecida e conhecedora de muitos, e por muitos. Cheia de contatos.

Não. Eu sou do tipo que, facilmente, mistura-se na multidão. Minha lista de amigos no facebook não é impressionante, minha lista de contatos no celular é vergonhosa, minha lista de amigos próximos é ínfima, minha lista de amigos íntimos então...

Mas (e sempre tem um "mas"), pode parecer antagônico, muita gente me conhece. Sim, porque dentro de meu círculo de convívio sou de certa forma pública. Para quem é ministro de louvor de cidade do interior, é natural ter pessoas que você nem sabe o nome saberem o seu. Só que saber o nome não é ser amigo.

A questão é que, no geral, minhas crises e vitórias são só minhas, e de meus pouquíssimos amigos íntimos. Portanto, dá para contar, em apenas uma mão, o número de pessoas que REALMENTE me conhece.

No entanto, sou uma garota privilegiada, e já disse isso. Dessa vez é porque, amigos ou não, sou rodeada de pessoas "gente boa", dessas que você se encanta ao chegar um pouquinho mais perto. E, o que é impressionante, muitos deles me consideram uma amiga, apesar de não me conhecerem tão bem. E têm a (boa) mania de me abençoar constantemente.

Um abraço, um "estou orando por você", um "garota, você é demais, sabia?", ou "e eu te acho uma pessoa tão grande!" inesperados, vindos de conversas informais, rodas de oração, e-mails, comentários de blog, são refrigérios para quem, como eu, tem a péssima mania de saber demais, de pensar demais e, geralmente, com seus próprios botões. Porque, às vezes, quietos entre livros e partituras, temos a sensação de que somos sozinhos demais (culpa de nosso eu casular). Bobagem!

Então pessoas simples e sinceras, com sorriso simples e sincero, aparecem do nada, trazendo abraços e elogios inesperados, e nos assombram. Depois do susto ("ela está falando de quem?"), sorrimos, com o coração acalentado e morno.

Não, os inteligentes possuem amigos; os líderes possuem amigos; os mais velhos possuem amigos; os quietos possuem amigos; os solitários também. E por incrível que pareça, os inteligentes-líderes-mais velhos-quietos-solitários como eu encontram amigos onde menos esperam. E somente porque Deus sabe que precisamos deles!

Foi o que meu dia rendeu.


terça-feira, 18 de junho de 2013

Noite do saco cheio_17/06/2013


Sabem quando uma pessoa boceja e você acaba bocejando junto, sem ter vontade inicial? E sabem quando está com algo para dizer entalado na garganta, mas fica olhando para os lados esperando que alguém fale primeiro?

Pois é... Estou vendo isso acontecer em âmbito nacional. Alguns foram os que ousaram levantar a mão primeiro. Outros, com aquilo atravessado na garganta, ao ouvir o grito alheio, criaram a coragem de gritar também. Outros ainda, e sei que isso acontece, apenas se deixam levar pela onda, um reflexo instintivo e social que quando um boceja, outros o fazem, afinal multidão atrai multidões.

Na verdade, não importa muito se foi por convicção ou por modismo. Não importa se o começo foi por lei da inércia de manter o movimento, e a empolgação. Não é menos válido o testemunho do cara playboy que foi pra ver qual era e voltou com a própria identidade abalada pela quebra de paradigmas, do que o do cara que lutou e sonhou, talvez com menos repercurssão, com isso a vida toda. Não importa: o que importa é, primeiro, ver uma geração apática sair às ruas não para gritar GOL! e sim SEM VIOLÊNCIA! O que importa é que uma multidão de brasileiros cantou o hino nacional entusiasticamente e ela não estava no estádio, e sim nas maiores avenidas do país, em metrôs de ônibus e no congresso nacional. E não, não tinha um telão ligado!

O brasileiro, finalmente, ficou de saco cheio! Os governantes perguntam "de quê?", e creio que a resposta mais sincera seria "DE TUDO!". De repente, lembramos que temos voz, e que podemos reclamar, em alto e bom som, que não queremos e não concordamos com nada disso. Não concordamos com bilhões serem gastos na Copa do Mundo enquanto se abafa os problemas sociais. Não queremos que a polícia invada o morro apenas para garantir segurança durante os jogos, e depois tudo volta ao "normal". Não concordamos com o discurso de que o país não tem dinheiro para investir na educação, que manter um sistema de saúde decente é caro demais e somos pobres. Não engolimos mais os discursos vazios de políticos que acham normal darem a si mesmos aumentos exorbitantes, enquanto os professores precisam apanhar e fazer alta carga horária para apenas viverem com dignidade. Não toleramos pagar alto em carros nacionais, e saber que lá fora, aqui pertinho, eles são acessíveis e baratos. Não toleramos uma polícia que, ao invés de proteger, é paga e mandada a ser cega e violenta, não importa a quem, e resolver as coisas a base do tiro e do gás. Não toleramos mais ser um dos maiores países em diversidade de fauna, flora e sistemas, termos a maior rede de água potável do mundo, as melhores praias, grandes pensadores e cientistas, um sistema avançado de eleição, uma constituição bem elaborada e tudo isso não fazer a menor diferença, na prática, para seus cidadãos e habitantes. Não toleramos mais... muita coisa!

Foi a noite do saco cheio. Jovens; crianças; homens e mulheres; geral do morro e a galera da pista; o povo da zona Sul e da zona Leste; os filhinhos-de-papai das públicas e os raladores das particulares (e vice-versa); aposentados; idosos; os politicamente ativos, os apolíticos (porque isso é coisa de quem não tem o que fazer) e os desiludidos (não resolve mesmo); a geração y e todas as outras letras; os adeptos de bibliotecas e saraus, e os adeptos de playstation e facebbok; tinha de tudo. Todos gritando palavras de ordem e entoando o hino nacional com orgulho. E quem não foi, estava em frente a TV, vendo a Copa? Não, querendo ver as imagens de quem foi.

Alguns amigos críticos (e eu tenho vários, ainda bem!) levantaram a questão: tá, e aí? Um bando de cartazes de cartolina vai resolver alguma coisa? Gritar resolve? Claro que não! Apenas isso, não mesmo! Mas não vejo tudo isso como a solução final dos problemas do Brasil. Tem muita coisa pra fazer! Vejo isso como um sintoma, um bom sintoma: não estamos mais apáticos. Colocamos o grito de insatisfação na pauta internacional, e creio ser um bom começo.

Mais do que isso, espero mesmo que seja o começo de uma mudança de postura nacional. Que nasça aqui uma geração que vai, a cada dia, nas pequenas e nas grandes coisas, encarar cidadania como parte importante de sua vida pessoal. Uma geração com mais noção de conjunto, de respeito, de ideal. Uma geração que seja, pelo menos, incomodada! Para onde essa postura vai nos levar? Não sabemos, teremos que pagar para ver. O que importa é o despertar, o levantar de olhos para frente. O que importa é ver uma geração entrar no facebook para mudar a realidade, e não mais para fugir dela!

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Arte vinda do outro lado do mar

Estou apaixonada, perdidamente apaixonada por um poeta e sua concisão, sua verdade, sua certeza, seu texto longo e denso que não nos dá fôlego à leitura em momento algum e nos transporta a um redemoinho de impressões e ideias vindas do outro lado do mar. Agora respire: estou tentando imitar seu estilo!

Craveirinha é um poeta moçambicano que tive a honra e o prazer de ser apresentada a seus textos pela USP. Meu vínculo com a melhor e maior faculdade da América Latina está terminando, por ora, e de despedida me presenteou com outra descoberta, outro encontro espelhar, outra voz cantante que vou levar para o resto da vida. Isso basta como introdução. Seu texto diz por si só, e por ter amigos da terra moçambicana e angolana, quase fui capaz de ouvi-los dizer, num só fôlego, a dor pungente que pode ser causada pela estupidez humana baseada em ideologias, vaidade, orgulho e o rolar dos tempos. Boa leitura!


África

Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturado com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos
a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.

E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rolls Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.
Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos
e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.

E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo
vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de «strip-tease» e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíça
um filme de heróis de carabina ao vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das balas e aos gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.
Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço
rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas da chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens que inventaram
A confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux Klan, Cato Mannor e Sharpeville
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre o ninho morno de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi
assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas «made in Germany»
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do espasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extingiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinta côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cow-boy do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo do Japão.

Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero
Perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, amens
e bíceps do meu povo.

E ao som másculo dos tantãs tribais o eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a táctica harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.

(Xigubo. Maputo: AEMO, 1995, pp. 10-12)

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Cores de um enxoval

Um dia desses me perguntaram qual é a minha cor preferida. Para quê? Para um presente, oras! Não soube responder. Ah, qual é, você deve ter uma cor preferida! Disse que não. Menti. Claro que tenho... É que é meio difícil de explicar...

São várias as cores que gosto. Adoro cor de chocolate quente feito pela mãe em dia de frio. Ou de chocolate dado pelo namorado, comprado na padaria da esquina. Enfim, gosto de chocolate, quem não gosta? Doce, derrete na boca, vai embora devagarinho e sempre deixa uma sensação de "poderia durar mais".

Na verdade, gosto de tudo que poderia durar mais. E gosto de azul. O azul de um céu limpo, de um dia de praia. O azul da piscina gelada e rasa dos fundos da casa da vó onde encontrava primos, brinquedos e fantasias. O azul do uniforme da escola preferida.

Também gosto de verde escuro. De todos os campinhos que joguei bola, de todos os gramados que sentei pra contar piada, estrelas, beijos... Dos cochilos em gramas macias, de cheiro de grama molhada de chuva de verão e de lágrimas derramadas escondido.

Adoro o branco! Das gotas da chuva, da espuma da cachoeira, de névoa que sai de nossa boca no frio. Gosto da clareza do branco, da clareza de ideias e de valores. Da frescura e da limpeza do branco. Gosto de algodão e de nuvens, e passando por uma em queda livre pude jurar que são a mesma coisa! Gosto do branco dos dentes, principalmente se aparecem emoldurados num sorriso doce ou numa risada boa.

Acreditem, gosto do preto. Da noite estrelada, do silêncio. Da sensação de refúgio e de nostalgia da penumbra. Do mistério. Gosto de um cantinho escuro que não me deixe ver nada além de meus pensamentos.

Gosto muito, muito de vermelho. Como maçã, como rosas e como sangue. Cor ambígua, não? Intensa, cheira à vida e à morte, cheira a amor e à paixão, cheira a paraíso e perdição. O vermelho me faz lembrar que as grandes potências da vida podem levar aos céus ou ao inferno, depende de como as utiliza. Pode ser profundamente bela e gratificante, também perigosa e mortal. Intensa e quente.

Oras, Elisa, é simples: escolha uma delas! Não dá, gente... Porque as cores que gosto de verdade não existem! Vou explicar...

Gosto da cor lilás do abraço. Um abraço é mágico e tem o poder, um gesto tão simples, de acalentar e suprir as mais profundas necessidades psíquicas do ser humano. Ser acolhido, ser protegido, ser respeitado, ser desejado, ser amparado... Está tudo ali, num simples abraço! E gosto da cor bege do colo. Aliás, bege e lilás ficam lindos juntos!

Gosto da cor metálica da amizade, sólida como titânio. Pode ser marcada com o tempo, pode sofrer mutações mas pra quebrar... E com o tempo, polida e moldada, vira cumplicidade e brilha. Nada como uma prataria lustrada e brilhante!

Também gosto do amarelo quente de um dia de sol radiante. De manhãs radiantes, de sorrisos radiantes, de olhares radiantes. Mas no geral, o amarelo cai bem no dourado que ando carregando na mão...

Mas a preferida, sem sombras de dúvida, é o verde-mel-castanho. Essa cor, se eu pudesse, encheria o planeta inteiro com ela! Porque é o começo e o motivo de tudo. E é tão única que adora ser furta-cor: muda conforme a luz do dia, a intensidade do sentimento e a frequência cardíaca. Muda conforme o humor e a umidade do lugar. Muda conforme o brilho do sorriso e conforme a intensidade da saudade. Ela é tão especial e rara que quando a descobri no planeta pensei: "Feliz quem puder desfrutar dela pra sempre!" Pois é, morram de inveja...

Mas Elisa, afinal, qual é a cor do seu enxoval? Bom, tem de tudo um pouco. De esperança, de gratidão, de molecagem. Tem um pouco de vermelho, rosa, lilás, azul, branco, preto, cinza, amarelo, verde... Tem um tanto de história, de milagres (os grandes e os pequenos). Tem um pouco de erros, de crescimento, de ansiedade, de lágrimas. É mais plural que o arco-íris, garanto! Então tanto faz: escolha a cor que quiser para o presente. A única cor que faço questão de ter eu já tenho: a do brilho apaixonado dos olhos do homem que amo. As demais, são todas bem vindas, sem preconceitos!



domingo, 3 de fevereiro de 2013

Faz-me lembrar

Ansiedade é o desejo ardente pelo futuro, que faz o presente insuficiente.

De repente tudo fica suspenso. A concentração nas coisas triviais e cotidianas some. O coração acelera e uma descarga de energia flui em nosso corpo deixando-nos alertas. Apreensivos, ficamos como quem espera em uma emboscada: o tempo não passa.

Nossa cabeça presentifica o futuro ao ponto de quase sermos capazes de tocá-lo. E essa presença fantasma chamada antecipação tira qualquer pessoa do sério, principalmente se ela for do sexo feminino. Sim, somos ansiosas por natureza. Exatamente pela capacidade de prever, de antever, de viver previamente. Nosso trunfo e nossa angústia.

Então contamos os segundos, e como eles passam no ritmo de sempre, arranjamos o que fazer para nos esquecermos da contagem. Ler, dormir, correr, ver filmes, escrever... Qualquer coisa vale. Desde que garanta a sensação de que o tempo passará mais rápido.

"Humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que a seu tempo vos exalte; lançando sobre ele a vossa ansiedade porque ele tem cuidado de vós." 1 Pedro 5. 6,7.

Como ter a paz de volta? Como sorrir pela manhã, feliz por cada dia? Como canalizar as energias e esperanças para o agora?

PRIMEIRO: "ele tem cuidado de vós". Não apenas lembrar que o futuro ao Senhor pertence e que Ele fará o melhor. Não: a chave parece ser desfrutar HOJE do cuidado de Deus, buscar enxergar a mão Dele agora, canalizar a expectativa para Seu agir presente. O que Deus fará hoje? Como posso ver Seu agir hoje? Como posso ver Seu cuidado hoje? O que Ele tem feito até hoje?

SEGUNDO: "lançando sobre ele toda a vossa ansiedade." Não apenas entregar em oração ao Senhor o motivo por que nosso coração se aperta no peito. Não: responsabilizá-lO. Lançar sobre Ele é fazê-lO responsável pelo que sentimos, pelo peso de nossas expectativas. Se é Ele quem opera tanto o querer como o realizar (Filipenses 2: 13-15), o querer é Dele, o realizar é Dele. É Dele a responsabilidade por nos permitir sonhar, e é Ele que possibilitará ou não tais sonhos. Logo, a responsabilidade de fazer as coisas darem certo é exclusivamente Dele, cabendo a nós apenas o sonho e a obediência dependente.

TERCEIRO: "humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que a seu tempo vos exalte". Gostamos de ter o controle. Gostamos de acreditar que somos seres pró-ativos, que fazemos acontecer. Gostamos de nos sentir úteis e atuantes. E quando diz respeito a nossos planos, queremos interferir no processo para termos, no fundo, a sensação do "eu fiz". Somos seres criativos e ativos, e quando o que está em jogo são nossos sonhos a motivação fica gigantesca. Ao ficar de mãos atadas nos sentimentos menores, incapazes de agir e interferir no rumo de nossas vidas. Sentimo-nos humilhados por nossa própria humanidade e pequenez.

É neste exato momento que o Todo Poderoso coloca as coisas em seus devidos lugares, inclusive nós mesmos. É nesta hora que nos faz lembrar que não somos capazes de apressar o tempo, de mudar as estações, de dar a nós mesmos mais um dia de vida ou um centímetro a mais de altura. Não somos Deus, afinal. E apesar de sermos capazes de muita coisa, nossas mãos não são tão potentes assim.

Ou nos debatemos em nossa bolha de limitações ou nos humilhamos admitindo que, no fim, as coisas serão no tempo de Deus e na forma de Deus. Ponto. Ao chegar a tal conclusão temos duas alternativas: continuamos sofrendo como moscas que se queimam na lâmpada, ou nos submetemos ao tempo e ao tratamento divinos na esperança de que um dia Ele nos exalte. Quando aprendermos a sorrir todos os dias, a descansar Nele todos os segundos, a ansiar por Seu agir HOJE, de repente nossos sonhos estarão aqui: no presente e palpáveis.

Ansiedade é o desejo ardente pelo futuro, que faz o presente insuficiente.

Dependência é a esperança certa do futuro, que faz o presente abundante.