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terça-feira, 15 de novembro de 2011

A saga de um estrogonofe

Chovia. O silêncio do apartamento vazio aumentava, como em ecos, o som tilintante das gotas batendo no vidro da janela. Era cedo, mas não ia trabalhar. Para alguns, chover no feriado é um baita azar. Mas para mim, encolhida debaixo dos edredons, era uma ótima oportunidade para não fazer nada.

Mentira: é impossível não fazer nada. No mínimo se pensa. E com gosto de preguiça na boca, com a moleza de quem pode se permitir não se mexer, me deixei ficar ali. De olhos fechados, ouvia minha respiração, e um tum-tum constante e sereno. Profundo...

O vento frio roçava em minhas costas descobertas, disputando a atenção de minha pele com o tecido. Ora um vencia, ora outro. A brisa gelava a nuca, que pedia um carinho morno. Nada.

Levantei, fechei as janelas, deitei-me de novo. Chuva, gotas, frio... a coberta me abraçava e me dopava. Ia e voltava lentamente ao mundo dos sonhos, e das lembranças. Por vezes eles se misturavam. Abri os olhos, mas foi como se não o fizesse. Porque o datashow de minha massa cinzenta havia sido ligado, e com ele, todo o resto. Uma corrente mnemônica trazia a meus olhos imagens, sensações e perguntas.

Assisti, inerte, ao meu fim de semana, aos meus últimos feriados, a todas as pausas vividas. Esse espaço oco na trajetória do cotidiano que existe para nos lembrar que a vida é mais que trabalho, tarefas e horários apertados. É também sorrisos, presenças, realizações, descobertas, conversas sinceras, boas companhias. É também de conquistas, de ápices. Momentos.

Chovia. O silêncio do apartamento vazio aumentava, como em ecos, os gritos abafados de um peito em crise. O som tamborilante de meu coração, de meus pensamentos, da falta que faz uma presença que preenche. Era meio-dia, precisa almoçar, e precisava fazer aquele dia um pouco mais útil.

Me esquecera de comer. Depois de muito adiar, enfreitei a chuva; desci as escadas, liguei um carro que custou a pegar. Achei um supermercado que ficasse aberto no feriado, escolhi os ingredientes torcendo para caberem dentro do orçamento planejado.

A ausência de algo vital dá seus sinais, mesmo que tentemos fingir que não sentimos seus sintomas, mesmo que racionalizemos não preciso dele sempre... Comecei a suar frio, era a pressão caindo por falta de energia no organismo.

Enquanto colocava as compras no carro, me lembrei: estou sem gás! Isso acontece também, quando se sabe o que se precisa ter, se sabe o que se quer ter, se cria uma estratégia para se ter, mas se percebe que ainda não se tem um meio, um instrumento, uma fórmula que faça acontecer.

Voltei ao mercado, comprei um pacote de bolacha pra espantar a fome. Paliativos... A chuva parara, mas a sensação molhada do ar não passou. Dirigi até o posto de gás mais próximo, implorei que fosse entregue um botijão em minha casa no fim da tarde de um feriado. O senhor, com misericórdia de meus olhos aflitos, famintos e ansiosos, foi generoso: mandou entregar.

Agora, sentada, saboreando a sobremesa, farta com meu cardápio favorito, me lembrei de uma verdade crucial, experimentada tantas vezes, e invocada outras tantas para aplacar a falta de sossego: quanto mais difícil, quanto mais tempo e energia são empregados para se conquistar algo, mais gostoso fica. Comi o melhor estrogonofe da minha vida!

sábado, 12 de novembro de 2011

Só: pronomes possessivos

Estava tudo bem. O andar firme, o caminho claro e plano, ideias no lugar. O desejo de estar só.

Sim, porque estar só sempre foi meu alvo. Estar só comigo, curtir as pequenas mazelas de meu mundo só meu. Procurava ansiosamente ficar só.

Porque só estando só, eu era quem era. Não me escondia de ninguém, não fugia de ninguém, não me preocupava com ninguém, ninguém me atingia. Não me machucava com ninguém.

Antes, na correria normal do dia a dia, eu buscava brechas para estar só. Queria um tempo e um espaço para me refugiar no violão, no sono, em algum passatempo, nas músicas, nos livros. Queria um lugar meu, e só meu.

E sempre acreditei piamente que, quando conquistasse o direito de ter um universo pessoal e exclusivo, intocado e íntimo; quando construisse um mundo só pra mim, aí sim, eu seria completa e feliz.

Mas de repente me vejo só. Com todo o tempo e todo o espaço só meus, na maior parte do tempo. Posso ser quem eu quiser e quando eu quiser. O silêncio, por tantas vezes procurado, o tenho sempre.

Mas tudo mudou...

O que foi que você fez?

Quando estou só, tudo está igual. Meu violão está aqui, meus livros, meus pensamentos, meus sonhos. Sim, eu tenho o meu mundo.

Mas pela primeira vez na vida não estou mais confortável nele. Por ironia, agora que tenho um mundo só meu, agora que construí minha intimidade e identidade; agora que sei quem sou, o que quero, o que faço e o que não faço, agora me sinto insuportavelmente só.

E por quê?

Porque ilogicamente, de repente, não quero ser a única pessoa que vive no meu mundo. O tempo que eu gastaria, anos atrás, comigo mesma, agora escorre enquanto procuro você.

Sim, porque você está em todos os lugares. No meu violão, na minha bíblia, nos meus livros, nas músicas, no barulho e no silêncio. Principalmente porque está em mim.

Todas as minhas ultimas escolhas, desde o que colocar no guarda roupa a "o que vou fazer quando crescer". O seu sorriso está por toda a parte, principalmente nos meus lábios. A minha imagem no espelho não me reflete mais. Reflete sim, a pessoa que me tornei por sua causa.

Mas se fosse só isso, tudo bem. Porque muitas pessoas já passaram por minha história e carrego pedacinhos delas até hoje. O problema não é esse.

O problema é que não sou mais capaz de ter prazer estando só. Pior ... não quero mais estar só. O que antes para mim era meu refúgio, hoje só me causa um aperto no peito. Sim, ainda gosto do meu mundo, sou introspectiva e sempre serei. A diferença é que tenho uma necessidade inexplicável e incontrolável, irritante até, de que você esteja nele.

O que foi que você fez?...

Sempre quis ter um mundo só meu.
Agora que tenho, não quero que seja meu.
Quero que seja nosso.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Machadiando...

Estudei a vida inteira porque sempre ouvi: entre nas melhores, você é capaz! E um dos dias mais felizes da minha vida foi quando meu vizinho tocou a campainha pra dizer "Ei, parabéns, você passou!"

Hoje, com cinco anos de FFLCH nas costas, a grande lição que carrego para a vida é não seja ingênua, nada é o que parece!

Sou estudante da USP, sou amiga de PM, amiga de partidário de esquerda e pretendo ser PF - meu Deus, que blasfêmia! - e, portanto, gostaria de dar uma visão um pouco mais crítica de tudo que vem acontecendo. Deixo claro que são elocubrações minhas, pessoais. Tirei da minha cabeça e do meu senso crítico, me responsabilizo por minhas ideias, ok? Então vamos:

- Hoje tudo é questão de mídia. TUDO! Até a desgraça alheia! Independente de quem está certo, não dá pra ser ingênuo o bastante pra achar que o jornalismo é neutro de ideologia. E sabemos que a ideologia dominante chama-se IBOPE. Calma, gente! Tenho amigos jornalistas, não estou dizendo que odeio os caras! Isso não é um texto inflamado de retórica, blz? Existe gente séria, que faz jornalismo sério, que estudou pra isso! Só estou dizendo que a cultura de massa dá dinheiro, que cenas marcantes dá dinheiro, que polemizar dá dinheiro e que o jornal cria verdades todos os dias sob o corte de sua ideologia! Falou no Jornal Nacional, pra 99% da população significa "acima de qualquer suspeita". Pera lá...

- Apesar de estarmos no século XXI, continuamos os mesmos seres humanos de sempre: adoramos esteriótipos! Frases como "estudante da USP é playboy vagabundo", "a PM é corrupta", "político é tudo igual" resumem um estado de letargia mental. a)Tem muita gente, e é a maioria, que estuda, trabalha, rala pra caramba pra fazer da USP o que ela é: a maior Universidade da América Latina. Tem professor sério, estudante gênio, estudante esforçado, pobre que ralou pra entrar, filhinho de papai que ralou pra entrar. Colocar todos no mesmo saco e chamar de "playboy vagabundo" só me faz não levar a sério a opinião de quem diz isso. b)Tem muita gente também que rala pra passar no concurso da PM, que vê a instituição como meio de vencer na vida, de fazer justiça. Gente que aguenta um cotidiano pesado, remuneração piada, situação de risco pra fazer seu trabalho decente. E a maioria da PM cumpre ordens. c) Existe político sério, que não se corrompe, que é inteligente o suficiente pra usar o sistema de forma a beneficiar a população. E existe, sim, playboy vagabundo que estuda na USP, PM truculento corrupto que bate antes de perguntar e embolsa uns, e político imprestável. A questão é: qual é o seu critério de julgamento, a mídia? Fala sério...

- Não concordo com a ocupação, nunca concordei. Mas sabia que ia vencer. Primeiro porque há interesses não muito claros por trás; segundo, porque não acredito nesse discurso romântico inflamado retrógrado de "abaixo a repressão!"; terceiro, porque concordo que se deve arcar com as consequências de seus atos, e colocar a USP nos holofotes por 5 gramas de maconha é palhaçada; quarto, porque, para mim, só se vence um inimigo não usando as mesmas armas: xingar, quebrar, cobrir o rosto, só ajuda pra perder credibilidade de uma discussão que deveria ser séria! E que discurso furado é esse?

- Não concordo com a postura da PM. Nem tampouco com seus métodos! Sei de todos os problemas em questão: a falta de estrutura, a falta de grana, o histórico corrupto, os bons que querem fazer um bom trabalho, etc. Mas só de participarem e coadunarem com o show que se monta já a isenta de qualquer credibilidade ou admiração. 400 policiais armados e treinados, helicópteros e cavalaria para enfrentar 60 estudantes "mimados"? Que medo é esse? São 60 estudantes ou 60 agentes secretos da CIA? Fazer revista em quem sai da biblioteca? Tratar estudante como ameaça? Impedir que alunos tirem fotos? Ameaçar aluno em ponto de ônibus? Tá de brincadeira?

Pronto, resolvi: vou criar um partido político na USP! Faremos piquetes virtuais, sem máscaras e sem tiros. E o grito de guerra será: PENSEM mais! Para mim ficou apenas a certeza de que as coisas estão fora de lugar. Intelectuais que não encontram formas inteligentes de protestar e apelam para o método clichê de ocupação; policiais que obedecem sem questionar, julgam sem pensar e permanecem com o método clichê da coerção; mídia que quer mesmo que o circo pegue fogo para ter o que mostrar no horário nobre.

E ficam também algumas perguntas: o que é democracia? o que é segurança? como se constrói a opinião pública? como lidar com o pré-conceito de classe? até que ponto vai a luta partidária? até que ponto vai a manipulação de massa?

No fim, estou apenas "machadiando"... Aprendi bem a lição: nada é SOMENTE o que parece ser!

"Cheguei na USP às 3h da manhã, com um amigo da sala. Ia começar o nosso 'plantão' do Jornal do Campus. Outros dois amigos já estavam lá. A ideia era passar a madrugada lá na reitoria, ou pelas redondezas. 1) para entender melhor a ocupação, conhecer e poder escrever melhor sobre isso tudo. 2) para estarmos lá caso a PM realmente aparecesse para dar um fim à ocupação.
Conversa vai, conversa vem. O tempo da madrugava passava enquanto ficávamos lá fora, na frente da reitoria, conversando com alunos da ocupação. Alguns com posicionamentos bem definidos (ou inflexíveis), outros duvidando até das próprias atitudes. A questão é: os alunos estavam lá e queriam chamar atenção para a causa (ou as causas, ou nenhuma causa)...e, por enquanto, era só. Não havia nada quebrado, depredado ou destruído dentro da tão requisitada reitoria (a única marca deles eram as pixações). A ocupação era organizada, eles estavam divididos em vários núcleos e tinham medidas pra preservar o ambiente. Aliás, nada de Molotov.
Mais conversa foi jogada fora, a fogueira que aquecia se apagou várias vezes e eu levantei a pergunta pra alguns deles: e se a PM realmente aparecesse lá logo mais? Seria um tiro no pé dela? Ela sairia como herói? Os poucos que conversavam comigo (eram uns 4, além dos amigos da minha sala) ficaram divididos. "Do jeito que a mídia está passando as coisas, eles vão sair como heróis de novo", disse um. "Se ele vierem vai ter confronto e isso já vai ser um tiro no pé deles", disse outra. Mas, numa coisa eles concordavam: poucos acreditavam que a PM realmente ia aparecer.
Eu achava que a PM ia aparecer e muito provavelmente isso que me fez ficar acordada lá. Não demorou muito e, pronto, muita coisa apareceu. A partir daí, meu relato pode ficar confuso, acho que ainda não vou conseguir organizar tudo que eu vi hoje, 08 de novembro.
Muitos PMs chegaram, saindo de carros, motos, ônibus, caminhões. Apareceram helicópteros e cavalaria. Nem eu e, acredito, nem a maior parte dos presentes já tinham visto tanto policial em ação. Estávamos em 5 pessoas na frente da reitoria. Dois estudantes que faziam parte da ocupação, eu e mais 2 amigos da minha sala, que também estavam lá por causa do JC. Assim que a PM chegou, tudo foi muito rápido:

os alunos da ocupação que estavam com a gente sugeriram: "Corram!", enquanto voltavam para dentro da reitoria. Os dois amigos que estavam comigo correram para longe da Reitoria, onde a imprensa ainda estava se posicionando para o show. Eu, sabe-se lá por qual motivo, joguei a minha bolsa para um dos meninos da minha sala e voltei correndo para frente da reitoria, no meio dos policiais que avançavam para o Portão principal [e único] da ocupação.
Tentei tirar fotos e gravar vídeos de uma PM que estava sendo violenta com o nada, para nada. Os policiais quebravam as cadeiras no carrinho, faziam questão do barulho, da demonstração da força. Os crafts com avisos dos estudantes, frases e poemas eram rasgados, uma éspecie de símbolo. Enquanto tudo isso acontecia, parte da PM impedia a imprensa de chegar perto da área, impedindo que os repórteres vissem tudo isso. Voltando para confusão onde eu tinha me enfiado: os PMs arrombaram a porta principal, entraram (um grupo de mais ou menos 30, eu acho) e, logo em seguida, fecharam o portão. Trancaram-se dentro da reitoria com os alunos. Coisa boa não era.
Depois disso, o outro grupo de PMs,que impedia a mídia de se aproximar dessas cenas que eu contei , foi abrindo espaço. Quer dizer, não só abrindo espaço, mas também começando (ou fortalecendo) uma boa camaradagem para os repórteres que lá estavam atrás de cenas fortes e certezas.
"Me sigam para cá que vai acontecer um negócio bom pra filmar ali agora", disse um dos militares para a enxurrada de "jornalistas".
A cena era um terceiro grupo de PMs, arrombando um segunda porta da reitoria, sob a desculpa de que queria entrar. O repórter da Globo me perguntou (fui pra perto deles depois da confusão em que me meti com os policiais no início): "os PMs já entraram, não? Por que eles tão tentando por aqui também?". Respondi: "sim, já entraram. E provavelmente estão fazendo essa cena pra vocês terem algum espetáculo pra filmar"
A palhaçada organizada pelos policiais e alimentada pelos repórteres que lá estavam continuou por algumas horas. A imprensa ia contornando a reitoria, na esperança de alguma cena forte. Enquanto isso, PM e alunos estavam juntos, dentro da Reitoria, sem ninguém de fora poder ver ou ouvir o que se passava por lá. Quem tentasse entrar ou enxergar algo que se passava lá na Reitoria, dava de cara com os escudos da tropa de choque, até o fim.
Enquanto amanhecia, universitários a favor da ocupação, ou contra a PM ou simplesmente contra toda a violência que estava escancarada iam chegando. Os alunos pediam para entrar na reitoria. Eu pedia para entrar na reitoria. Tudo que todo mundo queria era saber o que realmente estava acontecendo lá dentro. A PM não levava os estudantes da ocupação para fora e o pedido de todo mundo era "queremos algo às claras". Por que ninguém pode entrar? Por que ninguém pode sair?
Enquanto os alunos que estavam do lado de fora clamavam para entrar, ouvi de um grupo de repórteres (entre eles, SBT): "Não vamos filmar essas baboseiras dos maconheiros não! O que eles pedem não merece aparecer". Entre risadas, pra não perder o bom humor. Além dos repórteres que já haviam decidido o que era verdade ou não, noticiável ou não, tinham pessoas misturadas a eles, gritando contra os estudantes, xingando. Eu mesma ouvi muitas e boas como "maconheirazinha", "raça de merda" e "marginal" .
Os estudantes que enfrentavam de verdade os policiais que faziam a 'corrente' em torno da Reitoria eram levados para dentro. Em questões de segundos, um estudante sumia da minha frente e era levado pra dentro do cerco. Para sabe-se lá o que.
Lá pras 7h30, depois de muito choro, puxões e algumas escudadas na cara, comecei a ver que os PMs estavam levando os estudantes da ocupação para dentro dos ônibus. Uma menina foi levada de maneira truculenta, essa foi a única coisa que meu 1,60m de altura conseguiu ver por trás de uma corrente da tropa de choque. Enquanto eu tentava entrar no cerco, para entender a história, a grande mídia já estava lá dentro. Fui conversar com um militar, explicar da JC. Ouvi em troca "ai, é um jornal da usp. De estudantes, não pode. Complica".
Os ônibus com os alunos presos saíram da USP. Uma quantidade imensa de outros alunos gritavam com a PM. Eu e os dois amigos da minha sala (aqueles da madrugada) pegamos o carro e fomos para a DP.
Na DP, o sistema era o mesmo e meu cansaço e raiva só estavam maiores. Enjoo e dor de cabeça, era o meu corpo reagindo a tudo que eu vi pela manhã. Alunos saiam de 5 em 5 do ônibus para dentro da DP. Jornalistas amontoados. Familiares chegando. Alunos presos no ônibus, sem água, sem banheiro, sem comida, mas com calor. Pelo menos por umas 3h foi assim.
Enquanto a ficha caia e eu revisualizava todo o horror da reintegração de posse, outras pessoas da minha sala mandavam mensagens para gente, de como a grande imprensa estava cobrindo o caso. Um ato pacífico, né Globo? Não foi bem isso o que eu vi, nem o que o JC viu, nem o que centenas de estudantes presenciaram.

Enfim, sou contra a ocupação. Sempre tive várias críticas ao Movimento Estudantil desde que entrei na USP. Nunca aceitei a partidarização do ME. Me decepciono com a falta de propostas efetivas e com as discussões ultrapassadas da maioria das assembléias. Mas, nada, nada mesmo, justifica o que ocorreu hoje. Nada pode ser explicação pra violência gratuita, pro abuso do poder e, principalmente, pela desumanização da PM.
Não costumo me envolver com discussões do ME, divulgar textos ou participar ativamente de algo político do meio universitário. Mas, como poucos realmente sabem o que aconteceu hoje (e eu acredito que muita coisa vai ser distorcida a partir de agora, por todos os lados), achei que valeria a pena escrever esse texto. Taí o que eu vi
." by Shayane Metri _ repórter estudante da USP

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Manifesto Clichê

Aqui vai uma lista das coisas que mais quero na vida. E essa lista existe apenas para autodescoberta. Por que, antes de mais nada, precisei elaborá-la. É a admissão sincera de alguém que sempre pôde lutar pelo que queria, mas nunca soube bem o que isso era! Na verdade, sempre soube; só nunca admitiu claramente.

- Quero a sensação de saber que sou útil. Que por um momento, em alguma circunstância, fui a pessoa certa, no lugar certo, e tive a oportunidade de exercer meu papel com louvor.

- Quero que minha existência sirva para melhorar a existência do outro, qualquer que seja ele, o indivíduo que existe e não sou eu; todos os que passarem por aqui.

- Quero o sorriso, o toque, o beijo, a conversa desinteressada, a piada espontânea, a confidência, a cumplicidade, a troca de verdade, o crescer juntos, o brilho dos olhos, o dar suporte, o dar e receber colo, o dar e ouvir sugestões, a companhia, a confiança, o jogar coisas fora, o adquirir coisas, o matar tempo, o ganhar tempo, o investir tempo, os abraços, os sussurros, as broncas, os investimentos, os desperdícios, o mau humor, o bom humor, o medo, as lágrimas, a dor, a ansiedade, os abraços, os dedos entrelaçados, os telefonemas, os filmes, os livros, as músicas, o lanche, as tarefas corriqueiras, os projetos de vida, a voz, o suor, a pele, a oração, a preocupação, a empatia, o afeto, a espera, o respeito, a admiração, o compartilhar, os silêncios e seus significados distintos, e toda a lista interminável de coisas que tenta explicar a mágica experiência de ser de um ser.

- Quero dar valor à vida, à riqueza das pessoas e suas várias identidades, e de tudo o que se pode aprender com elas.

-Quero uma família. Uma de verdade. Não uma ideal, tão pouco uma falsificada. Uma real, com seu problemas diversos, seus laços, suas manias e tiques, sua riqueza de vida e de história.

- Quero não precisar me rebaixar ao consumo vazio, às expectativas plantadas, aos ídolos, ao senso comum, às verdades forjadas para me sentir humano, digno, decente e de valor.

- Quero a deliciosa sensação da conquista, quando se trabalha e se empenha por algo. Quero, antes de tudo, nada que seja fácil demais, nada que seja dado perniciosamente, nada que tire de mim a capacidade de lutar, de agir, de escolher; de conquistar.

- Quero ver minha fé se tornando tão palpável que qualquer estranho não fique alheio às suas manifestações; que o amor que prego esteja tão impregnado em mim, que a verdade que digo seja tanto o que vivo, que de fato, venha à existência material patente a qualquer um.

- Quero ousadia para enfrentar os hipócritas, os mentirosos, os falsários, os enganadores, os caluniadores, os manipuladores, os inescrupulosos, os injustos, os egoístas, os brutos, os orgulhosos, os perniciosos, os ambiciosos, os maldosos – de forma eficaz mas graciosa; e quero a coragem e a humildade necessárias para não me tornar um deles.

- Quero que aqueles que me conhecem, e que irão me conhecer, ao se lembrarem de mim, digam: seria bom se existissem várias dela!

- Quero a pessoa de Deus perto, mesmo que, para isso, seja preciso refazer meus paradigmas e a imagem que tenho de mim e Dele, quantas vezes forem necessárias.

- Quero viver, amar, construir algo que fique após mim, e morrer... Sim, eu quero morrer um dia! Espantado? Dois motivos: primeiro, é uma coisa que só se sabe como é experimentando; segundo, se eu vivesse para sempre, o ciclo errar-aprender-tentar de novo seria infindável e inútil, e uma hora, creio, isso cansa! Acabei de pensar em mais um: a certeza da morte, no fim, é o que faz a minha vida ter valor.

Bom... pelo jeito continuo clichê: quero exatamente o que todos os seres humanos querem!

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Meus 25 anos

Já ouvi de tudo. Que 25 é número de sorte e de azar. Que como sou do sexo feminino, não faz diferença ter 25 ou 24... Que me aproximo da melhor fase feminina, faltam apenas 5 para os 30. Que já tenho um quarto de século, e que ainda tenho, apenas, um quarto de século.

Já ouvi que estou ficando velha e preciso tomar cuidado para “não sobrar pra titia”. Já ouvi também que estou nova demais para casar, deveria fazer uma pós, um intercâmbio, comprar um imóvel...
Me falaram que o tempo é meu amigo, fico bela enquanto envelheço. Me falaram também para me cuidar, porque a beleza dos 17 não volta nunca mais.

Ouvi dizer que sou séria, sábia, centrada, responsável. Mas já me chamaram de moleca, divertida, criança-grande, melhor-amiga. Já fui decidida, mas aprendi a ser vacilante. Já fui fria e distante, já fui apaixonada e manhosa, já fui temperamental.

Já joguei no time da escola pra me sentir importante, já fui grande pensando ser inferior, e também já fui inferior pensando ser grande... Já ganhei amigos, perdi alguns, matei outros, guardei a maioria. Já pertenci, mas já fui peixe-fora-d’água.

Em 25 anos julguei os próximos zilhares de vezes, e mudei de opinião. Já tomei banho de chuva e de lama e de pétalas e de chocolate. E de mar... Enfrentei alguns medos, brinquei com outros, guardei alguns como souvenir. Falei com o sol, com a lua, e sozinha. Cantei de madrugada, passei noites em claro, durmi até tarde. Brinquei na rua, andei de patins, fiz guerra de amora, colecionei cicatrizes.

Já engordei por gula, por desleixo, por felicidade. Já emagreci por stress, por esporte e por vaidade. Já malhei por desespero e por prazer. Já pisquei para o bonito da escola, dei selinho por aposta, já gostei do melhor amigo (e de seus amigos), já namorei o cara errado, já amei...acho.

Já fui ignorada, paparicada, zombada, idolatrada, caçoada, respeitada, ferida, perdoada, esquecida, lembrada, “cantada” e ...cantada. Já abracei, já briguei, já brinquei, já chorei junto e sozinha, já menti, já fugi, já fiz sorrir, já encarei, já tropecei, já caí, já corri, já nadei, já voei, e morro de vontade de viajar no tempo. Já ganhei flores, já mandei flores. Já me arrependi de ter amado, e me arrependi de ter me arrependido.

Tenho de vida o que alguns têm de casados, ou de empresa. Creio, no fim, que melhor do que ter 25 anos de existência é ter existido por 25 anos.

Sempre quis ter 25 anos. Agora que tenho, não faço a menor ideia do que eles significam... Brincadeira, sei sim! Levei 25 anos pra saber.

sábado, 8 de outubro de 2011

“Um [outro] homem célebre”

Ele conseguiu. Vencendo obstáculos sociais, políticos, financeiros e literários, o pequeno Joaquim Maria Machado de Assis ultrapassou limites nunca antes pensados.

Descendente de escravos alforriados e portugueses, o mulato Machadinho, como ficou conhecido na tipografia que trabalhou nos primeiros anos, lutou anos a fio contra o estigma de sua cor e de sua classe. Filho de agregados, nascido e criado no Morro do Livramento – Rio de Janeiro, saiu de casa jovem em busca de espaço, de sustento e de identidade.

Cresceu em meio a personagens culturais ilustres de seu tempo, escrevia por prazer e por precisão. Afinal, viver de literatura e jornalismo nunca foi muito fácil, principalmente na sociedade estratificada brasileira do fim do século XIX.

Com o tempo, o garoto amadureceu sua escrita, sua imagem social e sua vida financeira. É notória a relação entre sua estabilização econômica, ao ser indicado a cargos públicos, e sua maturidade textual. Há quem diga que o “Memórias Póstumas de Brás Cubas” só foi possível após autoridade social e público cativo conquistados, que o permitiu dizer o que quisesse, inclusive zombar e criticar, sutilmente, à sua maneira, abalando os paradigmas ideológicos da classe dominante.

Machado de Assis venceu as barreiras sociais que impediam sua ascensão; venceu os estigmas que carregava na pele e se fez o maior escritor brasileiro através de meias palavras sugeridas ou não ditas, que diziam tudo. Sorrateiro, modesto, recatado, brincando de esconde-esconde com as verdades que não poderia dizer abertamente, o fundador da Academia Brasileira de Letras venceu, e foi levado nos braços do povo quando de seu falecimento.

Hoje, mais de cem anos após sua morte, Machado ressurge. Não nos livros, não nas inúmeras teses e estudos que levam seu nome, não nas escolas, nos seriados, nas adaptações. O ícone cultural entra nas casas dos brasileiros risonho, através da telinha da televisão.

Por ter sido um dos primeiros clientes da caderneta de poupança mais famosa do país, tem sua imagem reconstruída, reapresentada e repintada a todos os brasileiros, e ao mundo. O mulato gago e epilético, que venceu sua classe e o estigma de sua cor, ganhando espaço e a imortalidade através de pena tão característica, anda pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro de tempos atrás altivo, barba e cabelos encaracolados brancos... e pele branca.

Por essa, creio, nem ele esperava. Sua vitória é tamanha e total ao ponto de não importar sua imagem real. Basta que seja o Machado. Pois sua identidade está no que dizem dele, e na herança literária que deixou. O mulatinho fez escola e significa tanto para a tradição que pouco importa a verdade de fato. Machado, assim, incorpora, pós mortem, o que tentou mostrar, de forma salpicada e diversa, em todos os seus textos: é tudo uma questão de imagem e de papéis sociais. Ouso segurar a pena do mestre e, de forma machadiana, perguntar a você, bom leitor: o que importa?

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Do dia que quis ser herói


            Estava fresco. Era fim de ano, época em que os bons alunos passam o período escolar na quadra, enquanto os atrasados roem as unhas nas aulas de reforço. Eu estava na quadra.
            Quieta no meu canto, não estava ali para brincar. Andava com uma turma gente boa, mas estudiosa no grupo só eu. Portanto, não tinha companhia, e minha apatia social não me permitia tomar a iniciativa de conhecer gente nova. Muito menos no fim do ano.
            Curtia o vento de primavera, me aquecia ao sol, pensava nas férias. Adorava passar tempo à toa, mergulhada nas pequenas alegrias de um dia bonito e em meus pensamentos.
            Foi quando vi uma rodinha judiando de um menino menor. Éramos a turma mais velha da escola, época em que se começou a cursar a primeira parte e a segunda do ensino fundamental em escolas distintas. Aqueles eram repetentes dando uma de sabichões pra cima de um pequeno do primeiro ano.
            Me irritou. Quem eles pensam que são? Eu sou da turma mais velha da escola e não judio dos mais novos! Esses sem-nada-pra-fazer, que burlam aulas e desrespeitam os professores não têm o direito de descontar sua repetência e raiva no pequeno. Não comigo por aqui!
            Me levantei resoluta. Tirei o moletom, amarrei na cintura. Todos me conheciam, pois na época eu era moleca o suficiente para ser conhecida. Eu era a prodígio que zuava a aula inteira e tirava boas notas.
            — Ei...
            — Fala Elisa, beleza?
            — O que cê tá fazendo?
            — Tirando uma com esse baixinho aqui...
            O pobre do menino abraçava a lancheira e tremia, com os olhos cheios d’água. Encheu meu peito de compaixão e pena. E revolta. Pela primeira vez na vida, me irei.
            — Deixem ele, gente!
            — É só pra ele aprender que se respeita mais velhos!
            Essa frase, vinda de quem eu sabia que gritava com professor, só fez ferver o sangue em minhas veias. Fechei o punho, discretamente.
            — Paulinho, sério... deixa ele!
            Apesar de cantar de galo, Paulinho era um garoto medroso por natureza. Era só falar mais grosso que ele tremia nas bases.
            — Elisa, to de boa, cara! To só cumprindo ordem!
            — Ordem de quem? Botar pilha nos pequenos? Cê é covarde, isso sim!
            — Ordem da Larissa.
            Quem suou frio dessa vez foi eu. Larissa era uma delinquente juvenil. Uma repetente, sem família, criada pelo irmão mais velho, outro rebelde. Não que fosse o fim do mundo. E não é um exemplar naturalista e determinista: hoje é gente boa, formada em faculdade pública, dá aulas de educação física para menores carentes. Mas na época...
            Não quis sair do salto em minha primeira manifestação de gente grande. Apesar de tremer por dentro, fechei o punho com mais força, olhei em seus olhos e perguntei:
            — E cadê ela?
            Confesso que minha esperança é que ela estivesse na sala de reforço, e que Paulinho estivesse blefando. Não estava.
            — Falou de mim, guria?
            Olhei para trás, ela se aproximava prendendo o cabelo. Sempre foi muito bonita. Como uma menina tão bonita poderia ser tão moleque, pensei. Apelei para a diplomacia.
            — Falei, tava perguntando de você pro Paulinho aqui.
            — É, e o que tá pegando?
            — Falei pra ele que ia te contar a sacanagem que ele estava fazendo sem você saber! Eu tenho certeza que não concorda em bater nos pequenos, não é?
            — Esse menino aí é mimado, cara! Vive perturbando com esses brinquedinhos cheios de barulhinhos... e sabe né... fim de ano, tradição um apanhar! Não acha?
            Olhei para ela. Olhei para o Paulinho que ria atrás dela. Olhei para o pequeno que tremia. Uma gota de suor frio escorreu em minha testa. Engoli seco. Lembrei de Davi enfrentando Golias; de Jesus enfrentando Pilatos; de Daniel enfrentando o rei.
            — Num acho, não. E ele vem comigo!
            Enquanto falava, andei em direção ao garoto, distante alguns metros, parei fitando a monstro e coloquei o pequeno atrás de mim, enquanto segurava sua mãozinha. Ela tremia. “Tadinho...”. Criei coragem.
            — Como é que é?
— Larissa, você não manda na escola, cara. E esse pequeno não fez nada. Pra pegar ele, vai ter que me pegar primeiro!
            — Ah, sério?
            Larissa deu uns passos largos em minha direção. Eu virei para o menino e disse:
            — Vai embora, rápido!
            Começamos a correr. Eu corria nos passos dele, fazendo barreira para que Larissa não o alcançasse primeiro. Não até chegar na porta do pátio. Assim que vi o menino se esconder nas pernas da merendeira, fiz a curva e saí em disparada.
            Eu corria bem, por jogar bola desde pequena e por sempre ser centro-avante. Larissa gritou e veio ao meu alcance. O monitor ouviu o grito e chamou o professor de ginástica. Ele veio andando, dando tempo para ela me alcançar, pular em minhas costas me fazendo rolar no chão. Me deu dois tapas, se levantou e saiu correndo em direção à grade, em direção à rua. Nunca mais vi Larissa pessoalmente.
            Dolorida e ralada, levantei sem fôlego. Apanhei, e todos riam. Numa escola pública não querem saber o motivo por que você caiu. Se caiu, é bobo. Se apanhou, é trouxa. Se apanhou da Larissa é porque deveria estar merecendo.
            A gozação geral da moçada, mais a dor dos ralados nas pernas, mais o Paulinho rindo num canto provocaram em mim um misto de raiva e humilhação. Maldito moleque, pensei. Por que não foi pra casa? Por que não foi esperto e fugiu dela? Sentia raiva do pequeno, e do fato dele ser pequeno. Larissa não batia nos meninos do tamanho dela, só nos pequenos.
            Passei no bebedouro para lavar o suor, as lágrimas e a raiva. Nunca mais, prometi, meto o nariz onde não fui chamada. Nunca mais abraço a dor do outro. Nunca mais peito os poderosos. Nunca mais...
            Enquanto fazia juras e jogava água fria no rosto, alguém me chamou.
            — Elisa... alguém quer falar com você mas está com vergonha...
            A voz da merendeira me fez virar. Um pequeno, com lágrimas nos olhos, tímido que só, olhava para ela.
            — Vai lá, Calebe.
            Ele andou em minha direção, abriu os bracinhos. Eu me agachei e deixei o pequeno do primeiro ano me abraçar. Não tremia mais. Passei a mão em seu cabelo suado.
            — Você tá bem, garoto?
            — Tô... brigadu!
            Correu em disparada, e voltou a brincar. Sorri.
            Não sei se valeu, Deus – pensei – e se eu tiver um filho, vai chamar Calebe. Sim, eu queria ter a coragem de Davi, transformar a história de um povo. Eu queria crescer e entrar para a história.
            Crescer, eu cresci. Não revolucionei nada. Mas envelheço com a alegria de saber que, para um pequeno do primeiro ano chamado Calebe - que hoje deve ter seus 20 anos - fui herói.


sábado, 10 de setembro de 2011

Homem de verdade

"Não se fazem mais homens como antigamente!". Parada num ponto de ônibus, ouvi essa frase de um senhor. Não peguei toda a conversa. Fui pensando, durante o trajeto, que aquele velhinho estava mesmo revoltado, pelo seu tom de voz. E tentando entender seu discurso, levando em consideração sua idade, procurei reconstruir na mente o paradigma que construiu tanto a identidade de gênero daquele bom homem, como seu comentário, por consequência.

"Seja homem, moleque!"

Essa frase, eu ouvi algumas vezes. Presenciei amigos meus ouvindo isso de pais, de professores, de amigos, de namoradas, de mães, de chefes, de...

Os homens eram educados e programados para serem o sexo forte, leia-se bruto irrepreensível. Homem não podia errar. Homem não podia fraquejar. Chorar então... homem não!

A masculinidade era demonstrada nos gritos, na frieza, na palavra final. "Homem não para pra ouvir, afinal ele é o líder familiar! A palavra final é dele, já que está sob seus ombros o comando da família, dos negócios, da política, do mundo..."

Homem não sentia dor, só se fosse em batalha, ou numa pancadaria qualquer de escola. Homem não tinha medo de nada, não vacilava, não titubeava. Homem não se dava por vencido, não se apaixonava (a não ser por uma musa inexistente e inalcansável). Homem não pegava no colo, não oferecia ajuda, não servia. Homem não sentia, afinal ele era o cabeça da relação!
Aqueles homens...

Até que vieram elas: brigaram gritaram, esperniaram, choraram, foram mães e educaram uma geração. Os novos homens!

Hoje, um homem de verdade é muito mais que seus colegas antecessores dotados do mesmo título. Hoje, homem assume seus erros e pede desculpas (e sente orgulho por isso). Homem chora se doi, seja na pele, seja no peito, seja no orgulho. Homem de verdade estende a mão para tocar leve, abraça para proteger, pergunta se está tudo bem (e realmente para pra ouvir). Homem de verdade ajuda em casa enquanto uma intelectual mergulha em livros, enquanto uma trabalhadora toma um banho, enquanto uma mãe tira um cochilo.

E vamos além: hoje, homem de verdade diz o que pensa, diz o que sente e quer se fazer conhecido. Homem de verdade se deixa conhecer, se deixa guiar, se permite ser abraçado, admite suas fraquezas.

Homem de verdade diz "Eu preciso de você" a uma mulher, sendo sincero e sendo muralha, ao mesmo tempo.

Eles continuam sendo batalhadores, trabalhadores. Continuam másculos. Ainda assumem papéis de liderança. A diferença é que também servem, também obedecem, também sentem, também respeitam. Homem também chora. E é o choro mais belo e significativo.

Mulheres, vamos admitir: choramos mais. Porque nossa raiva, nossa frustração, nosso medo, na maioria das vezes não se manifestam em violência, mau humor, piadas sem graça, quietude, fuga, voz elevada, gritos e tapas na mesa. No geral, choramos. Umas fazem cena, outras, como eu, choram quietas. O que importa é que choramos fácil.

Para um homem, o derramar lágrimas, salvo excessões, é expressão de algo tão interno, tão caro, tão repentino e inesperado, algo que lhe cala fundo no peito, seja bom ou ruim, seja amor ou orgulho, mas tão difícil, que vira espetáculo. A lágrima masculina significa tanto quanto o nosso silêncio.

Preconceito... não, não é, não me interpretem mal. Conheço sim, homens manteigas, que choram por tudo e qualquer coisa, se emocionam fácil. É bonito também, e não há nada de errado nisso.

Mas o homem que tentou a vida inteira ser "homem de verdade" nos paradigmas sociais, na maioria das vezes, vigentes, precisou aprender na marra a engolir o choro. A ser rude, frio, forte. "Magina que mulher manda em mim!" Quem nunca ouviu isso? Qualquer concessão de vontade é visto como ordem, como humilhação.

Homem de verdade vence tais paradigmas. Vence a voz social que afirma que, para ser homem, não se pode chorar, não se pode gostar de bebês, não se poder ser frágil, não se pode tocar com leveza, beijar com cuidado, parar pra ouvir, muito menos atender a pedidos. Tentar entender as mulheres então... isso não é papel de um homem que se ponha em seu lugar!

Não, o homem de verdade se permite ser quem é: se forte, forte; se frágil, frágil; se carente, carente; se solícito, solícito; se amigo, amigo; se irritado, irritado; se conquistador, conquistador; se apaixonado, apaixonado; se pai, pai; se líder, líder, não tirano. Homem de verdade chora.

Se um homem de verdade de despir de seu orgulho, de seu paradigma, de sua opinião, de seu tempo, de seu dinheiro, de sua pose, de seu status, de sua máscara... olhar em seus olhos e chorar por sua causa, cuidado: você tem um tesouro nas mãos. Cuide dele, é raro!

Conheço alguns...

E a um ano descobri um. Foi o acontecimento. Encontrei um homem de verdade na situação mais inesperada, no dia menos provável, no contexto menos propício; em lágrimas inéditas. Naquela tarde, para minha paz interior, eu, uma ex-feminista, encontrou um exemplar homem-de-verdade. Tão de verdade, longe de todas as verdades vendidas, que até hoje me pergunto se é real.




segunda-feira, 18 de julho de 2011

Questão de orgulho

Vira e mexe, o assunto volta à baila. Primeiro, foi meu escudo. O ostentava como uma pseudo-proteção fantasmagórica, irreal e inútil. O problema é que eu ia à busca do que temer. Depois virou meu inimigo número um. Travava minhas ações e minhas iniciativas em prol de alcançar o outro, qualquer que fosse ele. Virou vilão por ser meu ponto fraco mais sensível, e meu pior monstro. E ao final de voltas, quedas e recomeços, o encontro novamente, atrás do brilho dos meus olhos, mas diferente.

Ainda me lembro de todos os detalhes do processo. De quando descobri que o que esperavam de mim não condizia muito com o que eu achava que era. De quando tentei ser todas as coisas que, pensei, fariam de mim um ótimo exemplar. E de quando descobri que todas essas coisas não passavam de bobagens!

Ainda me lembro do conflito constante entre descobrir-me versus admitir-me. E do quanto doía estar num não-lugar, num parênteses de identidade. Jamais vou esquecer a sensação de ser não sendo, e de não ser sendo!

Ainda me lembro de construir meus alicerces em rochas que só existiam em meus sonhos. Me lembro também de, por muito tempo, tomar por verdade a sombra de perigos que eu mesma criei, na leitura distorcida do que, depois, descobri ser meus maiores aliados.

Me lembro de fingir ser forte pra não chorar, e de acreditar que chorar sozinha era sinal de maturidade. Me lembro que, para mim, não admitir minhas inconsistências e não tolerar a dos outros era sinal de santidade. E de acreditar que eu cresceria livre da possibilidade de cometer os erros de meus pais.

Me lembro, claramente, da minha postura inicial, de tentar fazer-me intocável e inalcançável, só pra ver se algum persistente seria teimoso o suficiente. Foi. E ao afirmar todas as premissas que outrora exigi, ao invés de sustentar meu balão cheio de ar, o esvaziou aos poucos...

Assim, murcha, desconstruída, com a identidade reconstruída, o reencontrei. Mas diferente.

Meu orgulho me fez dizer, certa vez, que, se pudesse escolher, jamais geraria outro ser de meu gênero. Era sacanagem demais dar vida a mais um vivente confuso e ilógico como eu. E que tivesse que aturar todas as pressões sociais, todos as expectativas frustradas, todos os conceitos ideológicos subconscientes pré-concebidos, todas as transformações físicas e psicológicas não pretendidas tão pouco ansiadas, todas as angústias, os amores, os desamores, todos os heróis se transformando em seres imperfeitos. Não, não faria outro ser humano experimentar tamanha convulsão de sentimentos e ideias, nem passar pelo processo dolorido de encantar-se com o mundo para desencantar-se, para tornar a acreditar, e tornar a desiludir-se...

Mas hoje, estando tão vazia de mim, tão plena de alguém, de alguns e de outras coisas, o que me faz tão cheia de uma eu tão diferente, cheia de vazios que preenchem, olho pra trás e ganho um brilho nos olhos. Hoje, tia de meninas e amiga de mulheres, olho para a garota que fui na mulher que sou e sorrio.

E se me perguntassem o que fazer, eu diria: deixe-a. Não a proteja tanto! Deixe-a sofrer, chorar, tremer, temer, sorrir, se apaixonar, se machucar, se ferir, ferir, arranhar com as unhas, quebrar as unhas, arrancar os cabelos. Deixe-a lutar e sangrar suas inconsistências, ilusões, medos, ansiedades. Deixe-a sofrer. Porque é este processo sofrido e medonho que molda o mais humano dos seres que conheço.

Ingênuos são os que acreditam que somos apenas beleza e sedução. Tão ingênuos, ou mais, são os que creem sermos apenas seres irritantes, amoladoras, confusas, mandonas, manipuladoras, egoístas. Mais ingênuos ainda são os que dizem capazes de nos entender, controlar ou prever.

Um sábio, a quem devo muito, participou e assistiu o processo por que passei. Quando fui pequena, quis me proteger. Quando fui confusa, teve a paciência do bom ouvinte, rara. Conheceu todas as faces de meu orgulho doentio e não entendeu nada. Se feriu com ele, riu dele, teve piedade dele. E o venceu. Mas a essa altura já estava de tal forma perto que foi incapaz de ver o todo panorâmico e compreender alguma coisa. Jamais terá ideia de sua participação fundamental.

Espantado com cada nova faceta de mim, e cada vez mais encantado com esse ser furta-cor que sou, foi capaz de apagar meu orgulho-incêndio-criminoso que me consumiu por muito tempo, deixando apenas uma labareda pequena e inofensiva atrás de meus olhos, com uma frase: “Nunca vou te entender, e por isso mesmo nunca vou deixar de te amar!”.

Vira e mexe, o assunto volta à baila. Primeiro, foi meu escudo. Depois virou meu inimigo número um. Hoje, tenho orgulho de ter orgulho.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Uma árvore

Era só ter um tempinho livre, e lá estava eu, descabelada, descalça, de shorts e camiseta, encostando a bicicleta em seu tronco enorme. Não que seja realmente grande, mas como eu era pequena, via tudo muito grande.

Era sozinha, só ela, naquela esquina na vila onde morei por muitos anos, várias vezes. Na época em que ninguém me compreendia, e quando eu não compreendia ninguém, era ela o meu esconderijo. Não que tivesse algo de escondido. Estava no ponto mais alto da rua! Mas para quem tem 10 anos, todo canto muito seu se torna só seu.

O tronco largo, a certa altura, se dividia em L. Um galho grosso crescia paralelo ao chão, e perpendicular ao restante dela. Outro, mais fininho, meio metro acima, paralelo ao primeiro, teimava em existir, apesar de ter sido quebrado tantas e tantas vezes por crianças teimosas em se dependurar ali. Era o galho ideal para pequenos medrosos: o máximo que podia acontecer era cair no galho grande abaixo dele, que provou ser bem forte quando colocamos toda a turma sentados, para uma foto.

Outro galho, estranhamente, fazia a forma de um quadrado. Até hoje ninguém sabe explicar porque um galho, de repente, fez um ângulo de 90 graus e cresceu paralelo ao tronco. Só sei que aquela janelinha às vezes virava banco, poltrona da espaçonave, palco para shows, etc. E como as folhas escondiam uma parte do tronco, criou-se ali um esconderijo, uma tábua secreta para escritos secretos. Era afastar um pouco as folhas e manuscritos, xingamentos, códigos e afins eram marcados com facas, giletes, estiletes e tudo que conseguisse arranhar a grossa casca da velha árvore.

Um item desse meu monumento infantil fazia alegria de pequenos travessos. Sua flor, quando apertada entre os dedos, soltava uma gosma, um líquido amarelado, da cor da flor, cujo cheiro era um tanto enjoativo. E quando chovia, toda a molecada da rua se “armava” de flores para “atirar” a gosma no inimigo mais próximo, qualquer que fosse ele.

Mas para mim, o mais importante dessa grande árvore era o que ela me fazia ver. Muitas vezes eu subia o mais alto que podia e ficava ali, apreciando o horizonte, a cidade, o campinho, o céu. Sentada em seus galhos, olhava longe, tentava ver meus sonhos e futuro.

De tanto conversar com esse ser vegetal, cheguei a fazer promessas. E pedia a Deus que me deixasse cumpri-las. “Quando eu for grande, e tiver altura para subir em você sem precisar do banquinho, você vai ver... Você vai me ver bonita, com amigos, com meus primos mais novos. Vou trazê-los aqui! Vou fazer faculdade, ter uma história só minha, um carro só meu, um dinheiro só meu. As pessoas vão me levar a sério! Terei minha própria bicicleta, e ninguém mais vai me mandar lavar louça. Vou aprender a tocar violão, e vou tocar pra você! E um dia, você vai ver, os meninos vão parar de caçoar de mim. Vou te apresentar meu namorado, um dia! Eu vou voltar, te abraçar e você ainda estará aqui, porque algumas coisas duram mais do que a gente!”

Um dia desses, numa das últimas vezes que passei por ali, a vi, sozinha. Parei o carro. Não conseguia desprender os olhos daquele tronco. Agora, minha cabeça estava na mesma altura que o grande galho. E sim, se quisesse, subiria nele com um simples pulo.

Toquei sua casca grossa, cada vez mais velha. O mesmo cheiro enjoativo. Dei a volta, subi no galho que outrora era meu mundo. Afastei as folhas. Estava ali, tudo estava ainda ali. Minhas iniciais e de meus amigos. A vista não é a mesma, já que construíram um prédio onde era um campinho.
Sorri. Me lembrei das brincadeiras, dos rostos. De como meus problemas eram pequenos, mas pareciam tão grandes, como essa árvore. E como as pequenas coisas boas fincaram raízes e duraram pra sempre, exatamente como a árvore.

Um carro parou atrás do meu.

Ei, o que está fazendo aí?

—Minha amiga, como prometi... quero que conheça uma pessoa!

Isso eu sussurrei, claro. Não estava a fim de passar a imagem de uma louca que fala com árvores para o meu namorado.

— Vem cá, deixa eu te mostrar uma coisa!

Passamos bons minutos da tarde sentados no banco em frente ao tronco, eu contando causos infantis para um par de olhos atentos mais nos contornos de meu rosto que nos do discurso. Chegou a fingir ciúme quando o relato começou a narrar minhas desilusões amorosas pelo garoto da vila que brincava na árvore comigo.

— E isso tudo, só por causa de uma árvore?

— Não é uma árvore qualquer, é a minha árvore!

Fomos embora. Enquanto seu carro se afastava devagar por me esperar, olhei para ela da janela. É só uma árvore. Alguém que passe por ali e veja apenas um tronco velho será capaz de derrubá-la sem dor na consciência. Eu não. Tem tanto dela em mim, e tanto de mim nela, são tantas ferpas, e lágrimas, e fugas, e sorrisos, e histórias, e sonhos. Acima de tudo, uma grande lição: tudo é uma questão de perspectiva.

Minha pequena “grande árvore” é minha. Não que tenha sido eu que plantei, ou eu que reguei. Nem estive por perto sempre. Muito menos tenho o poder de protegê-la do destino certo que é sua derrubada. É minhas apenas porque, aos 25 anos, todo canto muito meu se torna só meu.

domingo, 3 de julho de 2011

E meu herói morreu

- Tributo a Ayrton Senna
Domingo de manhã. Dia importante, importantíssimo. Acordava cedo, apesar de poder dormir até mais tarde. E eu gostava de dormir... mas acordava mesmo assim, e nem ficava de mau humor como durante a semana.
Tomava café rápido. Em seguida, buscava a coberta no quarto e ia pra “salinha da bagunça”, o quarto da casa que, desocupado, virou sala de TV. Almofadas jogadas no tapete, o sofá que, apesar de duro, era super aconchegante.
“E aí, Elisa, tá pronta?”, perguntava meu pai, com empolgação na voz. “Estou!”, engolindo a torrada. “Está nada, senta aí e come devagar, minina!”, minha mãe, que apesar de também gostar do programa, não atropelava o cotidiano por conta dele, ao contrário da menina que fui.
Torrada engolida às pressas, leite derramado no pijama por ter corrido com a caneca na mão, sentava ao lado do pai no sofá. “Vamos lá, gente!” “Ele vai ganhar de novo, pai?” “Tomara né! Vai passar todo mundo...” “...no S do Senna!!” “Aeee...”
Estava em polvorosa antes mesmo que a corrida começasse. Achava tudo aquilo lindo, lindo de morrer: as bandeiras, os apitos, o vrum, vrum dos carros. Mas o som preferido, que gostava mesmo de ouvir era o “Zuiimm”, seguido do “Pan, pan pan... pan, pan, pan...”. Era emocionante!
“Alá...vai começar!” “Manhêee....vai começar....vem logo, o farol tá amarelo já!” Minha mãe largava as louças da cozinha e sentava conosco no sofá. A corrida começava, seguida de gritos. “Noss’inhora, vamo gente, acelera aí!”
No começo, a sala ficava silenciosa. O mesmo de sempre: carros correndo, acelerando, tentando se aproximar da primeira fila. Voltas e voltas sem emoção. Até que eu achava uma cabeça amarelinha no meio daquelas máquinas todas. “Alá...alá ele lá, pai! Achei, gente! Achei o Senna aqui, ói! Aqui ó!” Eu vi, Elisa, senta que eu já vi!”
Eu não sentava. Dali em diante, como todos os domingos, passaria os próximos 50 minutos, no mínimo, em pé, diante da TV. “Vai, vai, acelera!”
O volume das vozes aumentavam quando Ayrton se preparava para ultrapassar alguém. “Vixe, é agora! Vamo, corta ele... na direita, na direita...ii, num deu! Peraí, ele vai entrar na curva...vai, vai... do outro lado...isso... vai.....aeeee!!” Zuiimm, e meu herói despachava mais um pra trás, enquanto eu acompanhava meu pai narrando as imagens da TV, dando ordens técnicas ao nosso piloto preferido. “Sabe o que ele devia fazer? Abastecer! É, porque aí, quando a gasolina dos outros acabarem, ele tem um monte!” “Verdade né...Senna, para lá e abastece!” E eu acreditava que ele me ouvia.
Também não era sem motivos. Lembro-me bem de uma vez em que ele estava na frente, mas sendo arduamente perseguido por dois carros. Dançava na pista tentando fechar espaços para a ultrapassagem dos outros. Lembro-me que, na minha ingenuidade infantil, pensei “Preciso ajudar ele!”. Fiquei em pé e repetia, aos berros, a fala do comentarista. “Ó, Senna, cuidado viu, tem dois aí...ele vai entrar do seu lado, fecha, fecha...isso...ai... ó o outro, ai, tá chegaaaaanuu...corre...fecha...ansim...mais prá lá ó...isso....aee...vixe, tem ôtro...fecha....a curva, fecha a curva...aeee.....boa, eles num vão conseguí, podexá....”. Quando a corrida acabou, entrei na cozinha pulando de alegria. “Manhê...conseguimo....eu ajudei ele...conseguimo...” “O que, minina?” “Eu e o Senna, a gente ganhô deles!”
O mais impressionante é que, ágil, Senna fechava as brechas e bailava diante dos oponentes, de forma que eu jurava que ele me ouvia e fazia as manobras de acordo com o que eu dissesse. Acreditava, de verdade, que minha torcida fazia diferença.
“Elisa, vem lavar seu prato!” “Ah mãe...” “Vai lá, filha, num vai acontecer nada agora!” Fui. Resmungando, e querendo fazer tudo rápido pra voltar logo. Vai que o Senna precisasse de umas dicas...
Estava tirando o sabão da caneca quando ouvi. “Não!!” Meu pai deu um grito assustador na sala. “Que foi, amor?” “Ele bateu!”
“Tá vendo...” – pensei - “Eu não tava lá pra avisar ele...”. Corri pra sala. Meu pai, em pé, olhava pra TV. “Que foi pai?” “Alá...ele bateu no muro!” “Nossa...”
Sentamos os três no sofá, olhos vidrados na tela. Creio que nem piscávamos, tamanha era a apreensão. “E ele tava indo bem... pior que agora, além de perder o carro, vai perder ponto também!” “Pai... por que ele num saiu?” “O quê?” “Ele num sai do carro, pai...alá...” Silêncio.
E eu me lembrei que meu herói era meu amigo e me ouvia. “Sai daí, Senna...levanta! Sai do carro, Senna, sai do carro...num é possível...” Sentada, apertando o travesseirinho no colo, com um nó no peito, vi carros de apoio se aproximarem, ambulância, a corrida foi parada. “Pai, vão tirar ele de lá?” “Peraí, filha...”.
A voz do narrador foi ficando apertada e vazia, assim como estava nossos corações. “Ah não...”, foi tudo o que meu pai disse, colocando as mãos na cabeça. “Que foi pai?... Cadê o Senna...por que ele não sai de lá?” “Ah não, filha...” “Que foi?” “Acho que ele morreu...”
Ficamos ali, em pé. A sensação é que se todo mundo ficasse na sala faríamos, por mágica, alguma coisa acontecer, e sem ninguém esperar, veríamos a cabeça amarelinha sair do carro, acenando pra gente. Ele não saiu.
Depois daquele domingo, os domingos ficaram sem graça. E eu tentava não ouvir a musiquinha pra não chorar. Dali em diante, nunca mais assisti, com gosto, uma corrida de fórmula um. E meu herói morreu.

sábado, 7 de maio de 2011

O marimbondo

Estava à toa na varanda. Aquele imenso plano vermelho, à antiga, que circundava a frente inteira da casa. Todo o meu mundo particular. Estava à toa não, porque minhas brincadeiras eram muito sérias. E tinham que ser levadas a sério, poxa!
E pensar que ele se tornou um traidor - pensava minha mente infantil - Eu sempre quis ele, mas pra ser meu amigo, não pra jogar monstros em mim! E veio a lembrança da última traquinagem. Tudo bem que contei pro papai que tinha sido ele quem quebrou o vaso da mamãe com a bola. Mas não precisava pegar aquele bicho nojento e esconder debaixo do meu travesseirinho...
“Meu travisserim cherosim agora tá todo lá, tristim, pruquê num quero ficá nem um cadim per’dele ...credo!” Contava minhas tragédias ao meu melhor amigo, o Pogijo. Pogijo era um urso de pelúcia que escutava com atenção o que eu dizia, e sempre ficava a meu favor nas questões e brigas com meu irmão mais novo.
Naquela cesta, no interior das minhas Minas Gerais, e na época nem sabia o significado de ser mineira, a calmaria impregnava nas roupas, na pele, nas pálpebras. E o mundo para mim era grande, grande, mas tão mineiro e tão cheio de detalhes! Assim, qualquer bichinho era brinquedo, qualquer folhinha com dois gravetos uma casinha, qualquer corre-corre se tornava uma aventura, e eu conquistava o mundo.
Mas meu aliado, que pedi de presente de Natal para meus pais, para minhas batalhas imaginárias, tinha crescido e se tornado no maior vilão de meu videogame real, aqueles do fim da fita, na época em que se colocava fita no videogame. Meu irmão não entendia meu mundo calmim e minêro, poético e transcendental. Ele era travesso demais para viver de fantasia. E sua diversão era me aporrinhar!
Aprendeu que eu era medrosa, e tinha nojo de quase tudo. Então, fez da sua brincadeira preferida o pegar insetos barulhentos ou pegajosos e correr atrás de mim, ameaçando jogá-los, colocá-los em minhas roupas e brinquedos. Virou seu trunfo de chantagens. “Ói que eu ponh’uma barata na sua lanchêra, heim!” Eu corria me esconder no colo do Pogijo, e Pogijo sempre me dava razão de braveza!
Àquele tempo já tinha aprendido algumas orações na igreja. E naquele começo de tarde, sentada na varanda com Pogijo por perto, me lembrei da história do domingo anterior. Um certo moço tinha que guerrear com um punhado de gente lá, mas a turma dele era bem menor que dos inimigos. Aí, ele pediu pra papai do céu ajudar ele com os super vilões, e foi quando aconteceu o acontecido: os ômi acordarum ‘sustado, ficarum confuso, sem tendê nada, começarum brigá entre’les e fugiru achano que tinh’um montão digenti vinu lutá co’eles. Na verdade era papai do céu tomando as “providência”, que a gente nunca sabe donde veio, mas acaba nos ajudando.
“Gijo, será que papai do céu fazisso co’a gente? E se a gente, anssim, de mansim, pedi pr’ele dá providência tamém? E se ele fizer o Tesu pará de porrinhar?” E, desde aquela época já era atrevida, me atrevi a falar com o Todo Poderoso, importuná-lo com minhas primeiras preocupações.
Esquecida do ocorrido, porque era fácil me entreter com novas brincadeiras, me deixei ficar no canto da varanda com meus mundos imaginários. Foi quando vi meu irmão se aproximar. Típico: nas pontas dos dedos do pés, querendo não fazer barulho, imaginado que eu não estava vendo, com cara de quem vai aprontar alguma, o sorriso maldoso no rosto gordinho e vermelho de tanto correr no sol. Fiquei ali quietinha e pensava “E as providência?”. Foi quando ouvi o grito.
Olhei para trás e vi meu irmão aos berros, saculejando a mão direita, chorava, chorava, chamando o pai. “Ai, ai...ai, ai....ôoo pai, tá dueno!” Meu pai, que anos mais tarde descobri ser o mentor das aprontações animalescas de meu irmão, porque “era bunitim” me ver correndo pra ele, veio em socorro do caçula. Estava com a mão inchada, vermelha e dolorida.
Meu irmão mais novo planejava me irritar com o primeiro bicho que encontrasse na varanda. Mas em sua inocência, quis pegar rápido um marimbondo que, tranquilo, pousou por ali e tomava sol. Não deu outra: naquele dia descobriu ser alérgico a marimbondos.
Eu também aprendi lições importantes. Duas, para ser exata, uma boa e uma ruim. Guardei em meu coração que não se pode confiar muito nos meninos. E que papai do céu manda “providência” de verdade, até pras coisas sem importância, muito nossas. Papai do céu resolvia até um problema piquininim, se a gente pedisse.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Apertando a tecla "Dane-se!"

A Camila Campos, meu muito obrigada!

Minha geração é a que nasceu atrasada, mesmo sendo pontual. A que dá explicações para coisas que nem precisam delas. A que quer entender o mundo e, de preferência, manipulá-lo. Geração informação, tem acesso e passaporte.

Somos cidadãos do mundo. Entendemos como um terremoto no meio do nada mata nada menos que um monte de pessoas em algum outro lugar.

Também somos a geração dos recordes. Nascemos num mundo onde é possível alcançar o inimaginável. A geração prodígio, herdeira de conquistas sociais, do livre pensamento, da democracia (mesmo que imperfeita), da liberdade, do capital e seu capitalismo, do consumismo, da internet. Do tudo pra ontem, de preferência pronto e sem complicações.

Somos a geração veloz. Temos fast-food, banda larga, 16 cavalos de potência nos carros populares, metrô, via expressa, Rodoanel. Faculdade em 2 anos, sites de relacionamentos, celulares. Nascemos plugados e vivemos à velocidade da luz, virtuais.

E por tudo isso, correndo contra o tempo (voando, de preferência), é que não crescemos. Porque crescer leva tempo demais! Ter tempo de dar tempo ao tempo nos exige um tempo que achamos que não temos. Queremos que tudo esteja bem, amadurecido e pronto, já.

Queremos que um relacionamento tenha maturidade de 30 anos em 3. E queremos controlar, tal qual manipulamos a tecnologia, as circunstâncias ao nosso favor. De preferência, controlar tudo, e todos. Prever reações e reagir antes delas. Prever pensamentos, manipular sentimentos e nos precaver. Crianças manhosas e birrentas, somos nós!

Mas esquecemos que as coisas que não são modernas, antigas são, e funcionam sob as regras milenares fundamentais. Cumplicidade é um conceito antigo, lealdade sua irmã. Amor então... velho de guerra, já foi cantado, odiado, buscado, pleiteado, subjugado, manipulado, idolatrado, incompreendido, explicado, vivido. É tão carne de pescoço, e ainda vende! Está nos filmes, nas tragédias, nos Best Sellers. Nas igrejas, nos bordéis, nas praças, nos shoppings. O que seria das novelas, das histórias, do comércio, dos livros, das artes sem romance?

Relação básica humana universal, anda nos mesmo passos e ritmos que sempre andou. Os enredos, reais ou fictícios, se repetem inexoravelmente. Mas somos velozes demais para compreender seu curso, e por isso mesmo, erramos rápido demais.

Suas regras saídas do museu nos são estranhas porque pertencem a um mundo em que não se controlava quase nada, e havia tempo para dar-se ao tempo. Cartas que levavam meses para chegar ao destino, anos para serem respondidas. Havia tempo para pensar no que dizer, no que sentir, no que esperar. Havia tempo para ter certeza. E mais, havia tempo para perder, para não se preocupar. E havia a certeza de que, apesar de todos os esforços, tudo pode dar errado. Um vendaval, uma guerra, uma má colheita. As pessoas já foram tanto mais conscientes quanto mais solícitas à fortuna.

Ela existe, apesar de nossa pressa e nossa aparelhagem. Ainda tudo pode acontecer, como não acontecer. E essa geração manipuladora, a que faço parte, entra em pânico depressivo quando algo nos escapa ao controle. Ora, ora, quem somos nós?

Precisamos de freios para caminhar no tempo das relações humanas, o tempo que elas exigirem, ao seu tempo. E precisamos admitir que não somos senhores de todas as coisas. Nem as que nos dizem respeito!

Então, já que não controlamos as circunstâncias, nem o que pensam de nós, o que sentem por nós, ou o que vai acontecer... já que nossa ansiedade, e medo, e insegurança não implicarão na certeza de resultados... já que não estamos prontos quando queremos e não há software de atualização que agilize o aprender a viver... Dane-se! Nos preocupar demais pra quê?

Vamos dar tempo ao tempo que nos recompensará com tempo de sobra pra viver tempos reais e duradouros.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Ser capaz de sorrir

“Amar o outro que me faz metade” – Suerdes Viana

Incompletos. Nascemos assim. E temos a péssima mania de acharmos que não, somos um todo coeso, vivo e independente.

Independência. Afinal de contas, quem foi o narcisista que inventou este conceito? Um tanto utópico, diria que é uma filosofia Matrix. Isso mesmo, porque a maior parte do mundo em que vivemos é um outro inventado por nossos próprios conceitos, e pela leitura distorcida que fazemos da realidade. Adoramos os mundos paralelos, só nossos, moldados à nossa imagem e semelhança.

Não somos independentes. Nem completos. Sozinhos somos parte. Parte de um todo maior, mais complexo, e por isso mesmo, mais rico. Sozinhos somos apenas parte, pedaço, não inteiro, defeituoso e inútil. Qual a função da parte, a não ser fazer parte, pertencer?

Mas isto é o tomar consciência de algo com o qual nossa natureza narcísica entra em choque. Primeiro é preciso humildade. Não é muito fácil admitir que o universo não gira ao nosso redor, nós que giramos com ele. Ele não existe para nós, fazemos parte de suas engrenagens, apenas. Segundo, é preciso coragem para admitir nossa vulnerabilidade: o outro nos atinge, exatamente por não ser tão estranho a nós como imaginávamos; exatamente por nos ser complementar.

“Cara-metade”. Ô expressãozinha clichê! E falsa!! “Que calúnia... mal amada... nerdizinha revoltada da vida... pessimista!” Antes de ser apedrejada em praça pública, dai - me o direito de defesa.

Sim, é falsa. Porque não possuímos encaixe perfeito a nada nem a ninguém. E acreditar que sim também é narcísico. Que ousadia crer que um outro ser, tão complexo quanto você mesmo, será paralelo e complementar a você em todos os pontos! Também porque não somos uma peça imutável do quebra cabeça. Não somos os mesmos sempre. Não somos nem fixos, nem de papel.

Mas somos capacitados com poder cognitivo-passional. Somos capazes de construir mundos a partir do que temos. Somos capazes de viver Matrix conscientemente. Somos capazes de nos reinventar...e de escolher.

Ao nos perceber incompletos e carentes, buscamos o outro complementar. E quando cremos tê-lo encontrado, promulgamos pactos. De individualidade, de fidelidade, de sinceridade, de exclusividade, de permanência. E de fato, acabamos por crer na expressão clichê citada, e sorrimos por isso.

Mas o tempo, dádiva divina aos mortais incompletos em construção, um dia, a uns de forma cruel, a outros de maneira mais mansa, ensina a verdade que agora defendo: nada completa ninguém 100%, em 100% do tempo. O que fazer, então, se a essa altura, com compromissos selados e juras feitas, se descobre que o outro, a quem se prometeu ser metade, não é tão complementar como se imaginava? O que fazer quando percebemos que o outro não é feito à nossa imagem e semelhança, não responde às nossas expectativas fantasmas, nem cabe dentro de nossos castelos de areia?

Na maioria das vezes, perceber tal verdade é o golpe de estado que destrói todas as regras vigentes até então. Declaramos o estado de sítio nas relações e, em nome de um bem maior, anulamos todos os direitos conquistados. As promessas, alianças, compromissos são desfeitos num passe de mágica em nome da “felicidade”. Afinal, aprendemos em Matrix que “o importante é ser feliz”. Mesmo que nossa felicidade esteja fundamentada em conceitos virtuais, princípios “laranja”.

Nem nos preocupamos com o fato de que ser metade de alguém, ou fazer parte de algo, nos compromete. “Você é responsável por aquilo que cativa”. Se bem que, ser responsável, nos dias de hoje, está fora de moda. Mas isto é outra questão.

A questão aqui é amar um outro, complementar sim, mas não aos nossos moldes distorcidos, nem somente quando se encaixa em nossas expectativas egoístas. Amar por escolha deliberada e consciente de seus resultados e consequências. Ver a beleza de ser um pouco mais completo a partir de um outro, tão incompleto quanto. Ver a beleza de não ser plenamente metade, mas ainda assim completar. E ter o privilégio de ser eleita a metade faltante em outro alguém. Ter o privilégio de pertencer.

Conto nos dedos das mãos o número de pessoas que foram humildes o suficiente para admitir essa verdade, e para pagar o preço para vivê-la: amar o outro que nos faz metade de si, mesmo que não seja pleno...nem perfeitamente complementar ao nosso molde. E sorrir por isso.